Sara Lopes
Bolseira Gulbenkian 2016 – Histórias de Impacto
Originária da Ilha do Sal, em Cabo Verde, a minha trajetória profissional foi um pouco diferente da maioria dos doutorandos, mas permitiu-me acumular conhecimentos relevantes para poder ser aceite num programa doutoral sem estar habilitada com um mestrado.
Comecei a minha vida profissional como professora no Ensino Secundário, quando em Cabo Verde ainda não havia professores com formação superior suficiente para atender às necessidades do país. Tendo terminado o secundário, tornei-me uma espécie de autodidata: obrigada a estudar e aprender para poder ensinar, inscrevi-me em algumas ações de capacitação proporcionadas pelo Ministério da Educação, que na altura já contava com uma relevante colaboração da Fundação Calouste Gulbenkian, sobretudo no que respeita à formação de professores, à elaboração dos manuais e às bibliotecas escolares, para além da atribuição de bolsas de estudos a estudantes de todos os ciclos do ensino superior em Cabo Verde.
Tendo obtido a qualificação no Centro de Formação da ANA, E.P, em Lisboa, fiz uma incursão no sector da aviação civil como Oficial de Informação e Comunicações Aeronáuticas. Mais tarde, a paixão pela educação fez-me regressar aos estudos, razão por que me inscrevi no Bacharelato em História no Instituto Superior da Educação (ISE), na Cidade da Praia, em 1996. O ISE era um dos beneficiários dos programas de cooperação com a Fundação Calouste Gulbenkian.
Em 2000, através de um processo de equivalência, ingressei num programa de complemento de Licenciatura na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, no terceiro ano da Licenciatura (Pré-Bolonha) em Ciências da Educação, que concluí no ano letivo 2001-2002. Durante vários anos, acumulei as duas vias profissionais: ensino e aviação civil, o que me proporcionou uma intensa vivência em dois mundos muito distintos, mas igualmente exigentes no que diz respeito à necessidade de contínuo investimento no estudo e na atualização dos conhecimentos, ou não se tratassem estas de duas atividades que requerem um sólido domínio das competências necessárias ao exercício das atividades.
Em 1992 iniciei o meu percurso na política, tendo sido eleita para integrar a Assembleia Municipal da minha ilha de origem. O interesse pela política, enquanto área privilegiada de exercício da cidadania, de contribuição para a realização do bem comum e para a promoção do desenvolvimento fez com que aceitasse entrar nas listas para a Assembleia Nacional em 1995 e encabeçasse essas listas em 2001. Fui indigitada para integrar vários grupos de Amizade entre parlamentos do mundo, tendo sido a coordenadora do Grupo Cabo Verde-Portugal, Cabo Verde- Reino Unido, a representação de Cabo Verde nas RUP (Regiões ultraperiféricas), na CPLP, na CEDEAO, onde viria a ser a primeira representante do Parlamento cabo-verdiano e viria a integrar a MESA desse parlamento regional.
Em 2004 candidatei-me ao cargo de Presidente da Câmara Municipal do Sal. Não fui eleita, mas a experiência adquirida foi extraordinária. Dirigi uma campanha ao nível de uma das ilhas mais importantes do País, e orientei a conceção de um projeto de desenvolvimento para a ilha mais turística do país, a Ilha do Sal que, a par de um acelerado processo de desenvolvimento, acumulava sérios e desafiantes problemas nos domínios da habitação, do ambiente, da gestão do território, da educação, das políticas de inclusão social e do empoderamento das comunidades. Após uma experiência desta natureza, nunca mais se é a mesma pessoa. Passei a ter uma compreensão muito aguda dos problemas e dos desafios que afetam um país em processo de desenvolvimento, mas que ainda é frágil e muito dependente do exterior.
Em 2006 fui convidada para integrar o Governo da VII Legislatura, na qualidade de Ministra-adjunta do PM e da Qualificação e Emprego, com tutela sobre a comunicação social, a defesa do consumidor, as relações do Parlamento, o emprego e a formação profissional. Voltei a trabalhar de perto com a Fundação Calouste Gulbenkian, parceira na realização de projetos de capacitação dos profissionais da comunicação social, nos domínios do emprego e melhoria das condições da Biblioteca do Governo.
Em 2008, fui chamada a exercer as funções de Ministra do Ordenamento do Território, da Descentralização, da Habitação, do Ambiente e Gestão dos Recursos Hídricos. Em todos esses domínios foram concebidas e implementadas reformas importantes, sendo que alguns dos grandes projetos de reforma estão ainda em curso, como sejam o sector da água e do saneamento, do ordenamento do território, do cadastro predial, da capacitação das cidades e da regeneração urbana. Em 2012 assumi, até Novembro de 2015, as funções de Ministra das Infraestruturas, Transportes e Economia Marítima.
Em Outubro de 2015, Iniciei na Universidade de Aveiro a frequência do Programa Doutoral em Políticas Públicas, com o objetivo de adquirir as ferramentas necessárias para melhor sistematizar toda a experiência adquirida ao longo de 23 anos de intensa e rica trajetória profissional, política e cívica. Não teria sido possível levar a bom porto este projeto académico sem a Bolsa que me foi atribuída pela FCG. Escolhi como projeto de investigação «A Governação e a Fundação das Políticas Públicas em Contexto Insular, o caso das políticas públicas de transportes em Cabo Verde».
Por inferência e para verificar a consistência das conclusões, a trajetória das políticas públicas de transportes em Cabo Verde, seria alvo de comparação sucessiva com outras políticas e CV (outro domínio em que a FCG tem sido um parceiro tradicional de Cabo Verde) e com as PP de transportes em outros arquipélagos (Canárias, Açores e Madeira). Este curto percurso académico tem-me proporcionado experiências extraordinárias, a aquisição de novas ferramentas de análise, o domínio de novos métodos de apoio a decisão e uma melhor compreensão das realidades estatais pós-coloniais bem como o lugar imprescindível das políticas públicas em contextos altamente condicionados como são os arquipélagos multi-insulares, recém-constituídos estados-nação independentes e muito dependentes da ajuda pública ao desenvolvimento, nos primeiros anos da sua trajetória como país independente.
A maior dificuldade enfrentada durante este processo decorre da rápida mudança de vida, de trabalhadora ativa, para a situação de estudante e investigadora, sem o necessário domínio das lides académicas. A minha trajetória profissional permite-me ter muita informação sobre a realidade da gestão pública e dos processos de governação. A abordagem académica requer capacidade de abstração e distanciamento para que a investigação não seja prejudicada pelas «certezas» e vivências do investigador. Tem sido, neste aspeto, um desafio.
Outra aprendizagem que tive de fazer com algum custo foi o dimensionamento do projeto. Inicialmente, pretendia comparar o caso de Cabo Verde com vários arquipélagos e complexos insulares, o que requeria tempo e recursos avultados. Fui aprendendo com os problemas do projeto e redimensionando o seu âmbito. Continua a ser um estudo de largo espetro, o que requer mais tempo e melhor organização do processo de investigação. Se pudesse fazer alguma recomendação aos bolseiros que iniciam agora um processo académico, resumi-la-ia no seguinte: procurar o mais cedo possível definir o projeto de investigação e alinhar a ambição do projeto com o tempo e os recursos disponíveis.
Gostaria de poder continuar a colaborar com a FCG, uma instituição que faz parte da minha vida desde os primeiros anos da minha vida profissional, que tem contribuído sobremaneira para o desenvolvimento dos países africanos de língua portuguesa, de Cabo Verde em particular, sobretudo nos domínios da saúde, da educação e da qualificação dos recursos humanos.
Como sonho por realizar fica a possibilidade de seguir investigando e regressar, a tempo integral, à Academia e ao ensino.
Histórias de Bolseiros
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