Isabel Costa: “Mudar o mundo não é necessariamente ganhar prémios Nobel”

Isabel Lundbo Murta Costa veio de uma aldeia em Faro para estudar Direito na Universidade Nova de Lisboa, com uma bolsa Gulbenkian de Mérito. Nesta entrevista, fala-nos do seu singular amor à burocracia e dos planos para mudar o mundo com amor e alegria, um dia de cada vez.
07 mai 2024 7 min
Histórias de Bolseiros

O que te levou a escolher Direito?

Acho que, de certa maneira, sempre quis seguir Direito, mesmo antes de saber o que era. A minha mãe diz que desde que comecei a falar queria fazer coisas com leis; mas acho que se tornou mais claro aos 14 anos, quando os meus pais ficaram sem emprego e, na altura, sem saberem muito bem o que fazer e sem formação superior, decidiram abrir um bar, que era um sonho da juventude do meu pai.

No meio de todas as licenças e da burocracia necessárias para abrir um estabelecimento comercial, estavam um bocado perdidos, e eu é que comecei a olhar mais para essa parte. Achei aquilo fascinante, e foi aí que tive a certeza de que queria seguir Direito. De resto, sempre tive interesse pelos direitos humanos, pela  política, e ficava muito zangada com as injustiças do mundo. E continuo a ficar.

E dentro da área do Direito, o que gostarias de seguir?

Acho que a Isabel de 14 anos percebeu logo o que queria e a faculdade confirmou: eu gosto mesmo é de burocracia! Direito administrativo foi a cadeira de que mais gostei, até agora, e até fiz investigação nessa área, que é mesmo daquelas coisas que ninguém acha interessante, de maneira nenhuma [risos].

Há algo mesmo incrível e subliminar sobre isso porque é o tipo de coisas que têm impacto na vida das pessoas no dia a dia. É o direito administrativo que regula a economia e os serviços. Obviamente, temos toda a vertente dos direitos humanos e do direito constitucional, que são a base, sem dúvida, de qualquer sociedade; mas é pelo direito administrativo que de facto as conseguimos fazer valer.

Isabel Lundbo Murta Costa © Ricardo Lopes

És natural da aldeia de Santa Bárbara de Nexe, em Faro. Como foi a tua adaptação à cidade de Lisboa?

Foi interessante. Nunca tinha andado de metro na minha vida. Ia de autocarro para a escola e era um para ir e outro para voltar. Se quisesse ir a algum outro sítio, tinha de pedir aos meus pais. Aqui parece que está tudo ligado e é muito fácil chegar a todo o lado. Foi mesmo uma mudança total, principalmente a nível de independência e de perceber como é que as coisas podem ser. Na small-town life,  as oportunidades parecem todas muito fechadas e um bocado impossíveis. Depois chegamos aqui e é como chegar a uma terra em que os sonhos são possíveis, por muito clichê que isso seja. De repente há oportunidades e todas aquelas coisas grandiosas estão cá perto.

Até porque Lisboa é um pouco o centro da nossa Democracia. Pensar que o Parlamento está a uma viagem de metro daqui, poder visitá-lo, é fascinante para mim. No primeiro ano do curso estagiei na Assembleia da República e acho que foi mesmo o momento mais abre olhos de “OK, estas coisas afinal não estão assim tão distantes, não é uma fantasia que vemos na televisão”.

Também fazes muitas ações de voluntariado e atividades fora do âmbito académico. O que retiras dessas experiências?

Infelizmente, já não faço tanto voluntariado, é mais pontualmente, mas estou muito dentro do associativismo. Sou representante dos estudantes no conselho da minha faculdade e no Conselho de Ação Social da Universidade Nova de Lisboa. O que me faz entrar nessas coisas é pensar que é possível haver mudança, que conseguimos mudar a forma como as coisas são. É dar aquele primeiro passo para o mundo que idealizamos. Porque também é muito assim que vejo o Direito e a questão da regulação da sociedade: estamos a fazer, não para o mundo que temos, mas para o mundo que queremos.

Primeiro fazem-se as leis e depois é que se avança, cumprindo-as?

Isso é uma grande questão no mundo do Direito, se é a sociedade que faz o Direito ou o Direito que faz a sociedade. Eu acho que estamos na fase em que é o Direito que tem de fazer a sociedade, sim.

Então precisamos muito de pessoas como tu.

Eu acho que precisamos de pessoas com vontade de fazer, trabalhadoras. Se fizermos as coisas só por interesse próprio, há limites para o que vamos dar. Temos de saber que estamos a fazê-lo pela comunidade e, às vezes, transpor as barreiras do individualismo porque é a única forma de ultrapassar o cansaço. Acima de tudo, acho que nada se faz sem esperança. Se não tivermos esperança de que as coisas podem mudar para melhor, nunca vamos tentar mudá-las.

Isabel Lundbo Murta Costa © Ricardo Lopes

De onde veio essa tua veia comunitária?

Acho que veio muito dos meus pais e mesmo dos meus avós. A minha avó era uma pessoa muito dedicada, ensinava as crianças que não conseguiam ir à escola a falar português e inglês, dava aulas lá em casa. O meu avô também era muito apaixonado, os meus pais estão sempre prontos para ajudar no que conseguem lá na aldeia, nas festas da terrinha… tudo o que trouxer um bocadinho mais de alegria às pessoas.

Cresci à volta desse meio e esse foi o valor que eles mais me incutiram – trazer um bocadinho mais de alegria e amor às nossas pessoas. É para isso que estamos cá, não é para chegar a nenhum posto ou cargo. Se nós e os nossos estiverem felizes, não há nada mais gratificante.

Qual a importância da bolsa Gulbenkian Mérito para o teu percurso e para a tua vida agora?

Foi completamente imprescindível para estar aqui sentada neste momento. Só com esta bolsa é que consegui vir para Lisboa;  de outra maneira acho que não teria conseguido, A bolsa permitiu realizar o meu único sonho até à data, que era entrar no o ensino superior. Mostrou-me que, de facto, há oportunidades e os sonhos são alcançáveis.

Como é fazer parte da rede de bolseiros Gulbenkian?

Tenho ido aos encontros de bolseiros e acho que há sempre um grande sentido de comunidade, ao ver todas aquelas pessoas a quem a bolsa Gulbenkian possibilita outro percurso de vida. Se há uma maneira de mudar o mundo, é pela educação. Estar na rede de bolseiros é exatamente isso, ver as pessoas que vão mudar o mundo nos próximos anos, mesmo nas coisas mais pequenas.

Falo muito de mudar o mundo, mas acho que isso não é necessariamente fazer ações grandiosas ou ser uma daquelas pessoas que ganham prémios Nobel. Mudar o mundo é ser uma pessoa correta na sua atuação diariamente, alguém que tenta fazer pelos outros, pela comunidade. Mudar o mundo são as pequenas ações diárias que possibilitam que isto tudo continue.

Isabel Lundbo Murta Costa © Ricardo Lopes

Onde te vês daqui a 10 anos, quando projetas o teu futuro?

Daqui a 10 anos, com 31 anos… se tiver muita sorte, vejo-me com o mestrado e um doutoramento, porque é isso que ambiciono mesmo, continuar a estudar. Já tive oportunidade de fazer investigação em Direito Administrativo europeu, aqui na faculdade, e adorei; por isso, vejo-me a continuar a desenvolver projetos do género. A nível de profissões é um bocado mais complicado porque não me vejo necessariamente a ser advogada nem juíza. É uma questão de experimentar mais coisas até lá. Mas daqui a 10 anos, desde que me veja feliz e orgulhosa de mim própria, acho que me vejo bem. Espero estar a contribuir minimamente para a comunidade.

Diria que não faltam por aí associações que precisam de pessoas para tratar de burocracia…

Exato. Se estiver a tratar de papelada, acredito que estarei feliz. [risos] Não há ação mais pequena, mas mais importante, às vezes, do que ajudar alguém a preencher um formulário.

Série

Histórias de Bolseiros

Desde 1955, a Fundação Gulbenkian apoiou mais de 30 mil pessoas de todas as áreas do saber, em Portugal e em mais de 100 países. Conheça as suas histórias.

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