Nas propostas de Marlene Monteiro Freitas e Miguel Pereira, ainda que de pontos de vista diametralmente opostos, o colonial torna-se presente não como tema mas como experiência vivida, com os desafios que acarreta para as sociedades atuais. A contraposição entre a escassez de referências ao passado colonial no arquivo sobre a dança em Portugal e a sua presença quotidiana (nos corpos, nos imaginários e nas suas emanações), não só se manifesta nas peças como será abordada na conversa entre Piny, Angela Guerreiro e Désirée Desmarattes. Moderada por Cristina Roldão, esta conversa debruçar-se-á sobre as condições que enfrentam ainda hoje investigações sobre a presença de corpos negros em diversos arquivos e contextos.
O trabalho de Marlene Monteiro Freitas, construído de colagens de centenas de referências iconográficas, é um exercício de composição de memória e, para quem vê, de reconhecimento e estranhamento. Em Idiota, a artista dialoga com a obra do pintor Alex da Silva, também cabo-verdiano e dedicado a representar “criaturas” em transfiguração. Monteiro Freitas coloca-se dentro de uma caixa que é, ao mesmo tempo, lugar de aprisionamento e libertação. Neste espaço de imaginação cruzam-se as memórias do mundo, desde a violência colonial das Exposições Universais, onde corpos indígenas são exibidos à curiosidade ocidental, à fantasia do circo e da ilusão.
O momento presente, a memória e a sua perda são os fios condutores de Miquelina e Miguel, onde o coreógrafo Miguel Pereira procura resgatar um novo lugar, trágico-cómico, entre ele e a sua mãe. Nos entretantos, pelas palavras e gestos de ambos, vai aparecendo, de forma delicada, a complexidade brutal do século XX português, que Luís Trindade abordará depois em conversa. Um encontro delirante e carinhoso a dois, onde a dança, o absurdo e a fragilidade são celebrados num espaço de liberdade sem limites, numa tentativa de contrariar o tempo e escapar ao inevitável, enquanto o nacional-cançonetismo se mistura com ícones de Hollywood.