“A minha mãe chama-se Miquelina e nasceu em 1935. Durante grande parte da sua vida viveu em Moçambique. Nos últimos anos foi-lhe diagnosticada uma demência. Uma realidade que tenho vivido com sentimentos contraditórios, por um lado, o medo da degradação das suas faculdades, e por outro, o permitir-me aceder a um novo patamar de entendimento, que se situa algures entre a loucura, a ternura e a cumplicidade. Hoje olho para a minha mãe e reconheço-me mais do que nunca. O imponderável, essa loucura que por vezes me assalta, a vivência do fracasso e do ridículo, marcas que, sem saber, transportava vindas dela, e que só agora, à luz da degenerescência progressiva da sua memória, posso ver e entender. Descobri como a minha mãe tem sentido de humor e como gosta de dançar. Juntos rimos e fazemos disparates, as nossas maluqueiras. E, numa espécie de realidade paralela, por momentos somos felizes.”
— Miguel Pereira
O momento presente, a memória e a sua perda são os fios condutores de Miquelina e Miguel, onde o coreógrafo Miguel Pereira procura resgatar um novo lugar, trágico-cómico, entre ele e a sua mãe. Nos entretantos, pelas palavras e gestos de ambos, vai aparecendo, de forma delicada, a complexidade brutal do século XX português. Um encontro delirante e carinhoso a dois, onde a dança, o absurdo e a fragilidade são celebrados num espaço de liberdade sem limites, numa tentativa de contrariar o tempo e escapar ao inevitável, enquanto o nacional-cançonetismo se mistura com ícones de Hollywood.
No final, há uma conversa entre o artista e Luís Trindade, moderada por Ana Bigotte Vieira.
Inserida na programação do ciclo dança não dança, esta criação de Miguel Pereira é apresentada na sequência de uma conversa intitulada Desenterrar Memórias da Dança, que se realiza no mesmo dia, e estabelecendo uma relação com a performance Idiota, de Marlene Monteiro Freitas, apresentada a 9 e 10 de janeiro. Em ambas as obras, a partir de pontos de vista diametralmente opostos, o colonial, não como tema mas como experiência vivida, torna-se presente, com os desafios que acarreta para as sociedades de hoje.
Imagem © Joana Linda
Miguel Pereira (1963, Portugal) é coreógrafo. Da sua obra destaca-se Shirtologia (Miguel) (1997), em colaboração com Jérôme Bel, Antonio Miguel - Prémio Revelação José Ribeiro da Fonte e menção honrosa do prémio Acarte 2000, Notas Para Um Espectáculo Invisível (2001), data/local (2002), Transitions (2004), Corpo de Baile (2005), e Karima meets Lisboa meets Miguel meets Cairo (2006), em colaboração com Karima Mansour.
Luís Trindade é Investigador do Instituto de História Contemporânea da NOVA FCSH, e do IN2PAST — Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território. Foi professor de estudos portugueses e europeus em Birkbeck, Universidade de Londres, e de história contemporânea na Universidade de Coimbra. Em 2006-2007, foi investigador de pós-doutoramento na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris. Tem desenvolvido pesquisa nas áreas do nacionalismo, marxismo, cinema e outros aspetos da cultura popular em Portugal no século XX.
Ana Bigotte Vieira (1980, Lisboa) é Co-IR do projeto FCT Archiving Theatre e investigadora integrada do Instituto de História Contemporânea. Publicou Uma Curadoria da Falta. O serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian 1984-1989, a partir da sua investigação de doutoramento (Menção Honrosa Prémio Mário Soares 2016). Entre 2018 e 2023 fez parte da equipa de programação do Teatro do Bairro Alto. Juntamente com João dos Santos Martins iniciou o projeto Para Uma Timeline a Haver: genealogias da Dança como Prática Artística em Portugal de que dança não dança – arqueologias da Nova Dança em Portugal é a VII edição.
dança não dança
Este evento insere-se no ciclo de (re)performances, filmes e conversas que constitui o primeiro eixo do programa dança não dança – arqueologias da Nova Dança em Portugal. Saber mais