Domingos Ribeiro

Bolseiro Gulbenkian 2015 – Histórias de Impacto

A História de Impacto do atual chefe de Naipe dos Contrabaixos da Orquestra Gulbenkian, transporta-nos para uma narrativa de adaptação às adversidades e crescimento pessoal em prol da construção do caminho para se tornar músico.
10 mar 2023 9 min
Histórias de Bolseiros

Nasci em Macau por acaso, o meu pai e a minha mãe estavam lá por curta temporada e faziam, nessa época, parte de um grupo de folclore.

 

Numa família com cultura musical, em que toda a gente cantava, tocava, mas em que ninguém era músico profissional, não foram poucas as vezes em que ainda dentro da barriga da minha mãe fui sentindo umas violas e uns cavaquinhos a serem apoiados sobre mim. A música já estava em mim quando nasci. E esse laço nunca mais se perdeu.

 

De Macau, vim para Lisboa e de Lisboa, ainda pequeno, fui para Braga, onde se passou a maior parte da minha infância. Com 10 anos, quis começar a estudar música. Como na guitarra só sabia tocar a canção Dunas, dos GNR, o que não era suficiente para entrar no Conservatório Calouste Gulbenkian de Braga, aprendi a tocar mais ou menos flauta transversal. Consegui entrar e, ainda hoje não sei por que motivo, escolhi contrabaixo.

Foi o meu primeiro contacto com o universo Gulbenkian, onde me mantive até aos 15 anos. No 10.º ano, achava que ser músico não seria o meu futuro e resolvi sair do regime a tempo inteiro, fiquei como supletivo. A partir de uma certa altura, não interessa ter jeito, interessa estudar, e eu não queria estudar.

 

Mas o dia 1 de outubro de 2009, Dia Mundial da Música, fez-me retomar o caminho original. Estava eu no 12.º ano e, após um concerto no Teatro Circo de Braga, houve algo que se acendeu em mim. Percebi que andava no agrupamento de Ciências literalmente a passear os livros. O passeio era tanto que me levou à Venezuela por duas semanas, com o maestro António Baptista, do Conservatório, e que me fez chegar um dia antes do exame nacional de Biologia.

Claramente não queria saber muito daquilo. E, numa noite, a minha mãe perguntou-me: “Domingos, estás bem? Tu não quererás ir para música?” Toda a gente estava à espera que me decidisse por seguir música, amigos e família, só mesmo eu é que estava perdido. Encontrei-me em boa altura.

 

Com 18 anos, entrei na Escola Superior de Música de Lisboa (ESML) para estudar com o Professor Manuel Rego. Tive sorte porque, no meio de uma fila de espera de muitos alunos, eu fui aquele que entrou na vaga que correspondia ao congelamento da matrícula de um aluno, que se teve de ausentar nesse ano.

A minha primeira experiência como músico fora da escola foi nos anúncios da marca de telecomunicações Optimus, com a campanha All Together Now, mas a minha primeira experiência profissional foi com a Orquestra da Gulbenkian. No segundo ano da licenciatura, comecei, com frequência, a ser chamado como reforço para a Orquestra. E o universo Gulbenkian volta a entrar na minha vida, agora de forma mais consciente.

 

Na ESML, tínhamos uma vaga noção de que as bolsas da Fundação Calouste Gulbenkian exigiam muito trabalho, que só os “realmente bons” é que conseguiam alcançar, mas não estávamos nem perto de saber o que é, de facto, ser bolseiro Gulbenkian. No último ano de licenciatura, em 2013, comecei a ter vontade de ir estudar para fora e decidi concorrer para a bolsa, mas estava relaxado de mais, sem consciência da responsabilidade. Não estava pronto. A primeira prova correu muito mal e eu não ganhei. No entanto, soube aproveitar a experiência incrível de, no verão desse ano, fazer o primeiro Estágio Gulbenkian para Orquestra, em Aveiro, onde fiz amigos para a vida. Ou seja, mais um contacto certo e intenso que tive com a Fundação Calouste Gulbenkian.

 

Terminada a licenciatura, entrei no Mestrado, seguindo o que era expectável. No final do primeiro ano de mestrado, percebi que a vertente teórica do curso não se estava a enquadrar nos objetivos a que me tinha proposto, o que me fez buscar um novo rumo. Desafiado por um amigo, lancei-me para fazer uma prova na Holanda, para a academia da Royal Concertgebouw Orchestra, prova essa que eu jamais julguei estar à minha altura pois estavam lá alunos europeus de escolas de topo. Resultado: não só passei a primeira fase de provas, como cheguei à final e percebi que não ganhei por pouca diferença do vencedor inglês, o que foi determinante para mim como músico, deu-me muita autoestima.

Lembro-me de pensar: “afinal, estou ao nível do que os músicos europeus fazem lá fora. Só alunos de escolas incríveis e eu, com feedbacks incríveis dos avaliadores. Isto é giro!” Não venci a prova, é certo, mas regressei a casa cheio de força, sem medo de arriscar, o que fez com que ganhasse uma prova na Casa da Música e que passasse grande parte do segundo ano de mestrado na cidade do Porto, a tocar com as orquestras da escola.

 

Perto do final do mestrado, em abril de 2015, voltei a pôr-me à prova e concorri para a prestigiada Escuela Superior de Música Reina Sofia, em Madrid. Entrei. Mas como, nesta fase, eu não conseguiria ir estudar para lugar algum fora do país se não fosse com apoio, concorri pela segunda vez às bolsas da Gulbenkian, em maio de 2015. Ou ia com a bolsa ou não ia de todo, o que me tornou mais adulto, com a certeza do que queria para mim.

Desta vez, ganhei a prova e tive o feedback que merecia da muito querida Teresa Burnay: “Domingos, este ano tocou muito bem, mas há dois anos parecia que não queria estar aqui. Ainda bem que agora tocou melhor!” Todo o pessoal do Serviço de Bolsas foi incansável no apoio que me deu para ir para fora, fazendo uma cooperação extraordinária com a escola em Madrid, para garantir que eu podia permanecer pelo tempo e da forma que eu pretendia, ao ponto de cobrir despesas extra que a escola espanhola apresentou. Se não tivesse havido Gulbenkian, não teria havido esta oportunidade.

 

Foi durante a minha passagem pela Escuela Superior de Música Reina Sofia, em outubro de 2016, que tive a oportunidade de uma vida de me juntar à academia de uma das melhores orquestras do mundo, Symphonieorchester des Bayerischen Rundfunks, em Munique. Ganhei a prova e não havia qualquer dúvida em mim: tinha de seguir de Madrid para Munique para agarrar este sonho.

Apesar de estar a meio dos dois anos de bolsa, não houve qualquer impedimento por parte da Fundação. Antes pelo contrário, deram-me os parabéns e incentivaram-me a seguir o meu caminho, fazendo o que era melhor para o meu percurso profissional. Esse foi o momento em que eu percebi a dedicação que o Serviço de Bolsas da Fundação tem a tratar dos interesses dos seus bolseiros. Os interesses dos bolseiros estão sempre à frente: “Se eles querem ir estudar para determinado lugar, nós vamos ajudá-los”. É fora de série. Dá-te a chance de arriscar para chegares a níveis mais altos. Dá-te todas as possibilidades para tu poderes assumir esses riscos. A Gulbenkian é um pai e uma mãe, e foi-o para mim nas oportunidades que me deu.

 

Todo o meu percurso com a Fundação foi marcante ao ponto de, atualmente, ser um dos músicos da Orquestra Gulbenkian (Solista A – Chefe de Naipe dos Contrabaixos). E ainda era bolseiro quando, em setembro de 2017, fui selecionado para entrar na Orquestra; não entrei na primeira prova em agosto de 2016, mas entrei na segunda, em agosto de 2017. Ora, em dois anos de bolsa, de 2015 a 2017, consegui fazer tudo: estar numa escola muito boa, estar numa academia muito boa e entrar num emprego de sonho. O que é que eu posso pedir mais?

A Gulbenkian é, no fundo, toda a minha carreira porque foi ela que me permitiu ter oportunidades transformadoras para o músico que sou hoje. O nome da Fundação esteve sempre lá. A primeira coisa que escrevi enquanto contrabaixista foi: “começou a estudar no Conservatório de Música Calouste Gulbenkian de Braga”. É um nome que está presente desde que eu peguei num contrabaixo pela primeira vez.

 

Por isso, aos bolseiros músicos que ainda estão por vir, digo: arrisquem e confiem. Ser músico é uma profissão que exige fé. Exige esforço, obriga-nos a sair do nosso conforto, a abraçar situações instáveis, a pormo-nos à prova, a desafiarmos o desconhecido. Exige dedicação: muitas horas a solo, muita análise, muita cabeça, muita paciência, muita resiliência. Muito trabalho e pouca pressa; se trabalharmos bem, o nosso tempo chegará. A devoção ao instrumento e à música que fazemos tem de ser absoluta. Só assim se consegue passar uma mensagem e chegar às almas de quem nos ouve. E se algum dia não acreditarmos em nós, lembremo-nos que a Fundação Calouste Gulbenkian acreditou, acredita e acreditará. Isso vale ouro e permite-me afirmar com muita honra: sou um privilegiado!

Série

Histórias de Bolseiros

Desde 1955, a Fundação Gulbenkian apoiou mais de 30 mil pessoas de todas as áreas do saber, em Portugal e em mais de 100 países. Conheça as suas histórias.

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