António Raimundo

Bolseiro Gulbenkian 1977 – Histórias de Impacto

A História de Impacto de um bolseiro que realça a oportunidade de frequentar a Residência Calouste Gulbenkian e de lhe ter sido atribuída uma bolsa de estudo, enquanto fatores primordiais para contrariar o seu destino inicial, naturalmente ligado à agricultura e pastorícia dado ao ambiente rural no qual cresceu.
12 abr 2023 11 min
Histórias de Bolseiros

Pertencendo a uma família pobre e residindo numa aldeia do interior da Beira Alta encostada a Espanha (Malhada Sorda, Almeida, Guarda), o meu destino seria naturalmente a prática de agricultura/pastorícia de subsistência, intercalada com atividade de contrabandista. Foi este, aliás, o destino de todos os meus conterrâneos que não tiveram a oportunidade de prosseguir os estudos.

 

 

Terminada a quarta-classe, durante os dois anos seguintes (entre junho de 1969 e agosto de 1971) ajudei os meus pais na sua atividade de agricultura/pastorícia de subsistência, fiz algumas incursões como contrabandista, trabalhei esporadicamente à jorna (vindimas, arranque de batata, etc.), guardei vacas (de outros) e terminei este período como criado de um pastor de cabras.

 

 

Foi algures durante 1970 (tinha eu 10 ou 11 anos) que se deu o meu primeiro contacto com a Fundação Calouste Gulbenkian, através da carrinha-biblioteca que passava pela aldeia para emprestar livros. Requisitei o livro que o assistente da carrinha achou mais indicado para mim, e que contava a história de um cientista que foi passar férias para um meio rural do género daquele em que eu vivia.

 

 

De todos os “empregos” que tive nestes dois anos, o que me marcou mais foi o último, pois implicou a saída de casa para ir morar numa quinta isolada onde só viviam duas pessoas, o pastor (o Ti António “Espanhol”) e eu. Não tinha folgas para visitar a família, pois as cabras têm de ser apascentadas todos os dias. Por outro lado, a atividade de pastorícia é compatível com a leitura de livros; e, apesar de eu só ter um, o que me tinha sido emprestado pela carrinha-biblioteca da Gulbenkian, reli-o várias vezes.

 

 

O Ti Espanhol vinha todos os dias à povoação entregar o leite das ordenhas da noite e da manhã, que transportava em duas burras. Saía por volta das 8 horas da manhã e voltava ao fim da tarde. Deste modo, durante a maior parte do tempo era só eu, as cabras e um cão grande do qual eu tinha medo, pois tinha a sensação de que ele não gostava de mim. Um certo dia, deixei o livro aberto em cima de um pedregulho. Quando dei conta, algumas cabras já tinham comido folhas do livro.

Com 11 anos, quase 12, e “desempregado”, chegou a altura de ter alguma sorte na vida. Um vizinho meu, cujo pai emigrara para França, pretendia ir estudar para a Telescola da Freineda, gerida pelos padres Francisco e Inácio Vilar (irmãos) e que distava 7 km. Para o efeito, o único meio de transporte disponível era o recurso à bicicleta. Para ele não fazer o percurso sozinho, a mãe dele convenceu os meus pais a deixarem-me acompanhá-lo nos estudos. Como eu não tinha bicicleta, esta minha vizinha comprou-me uma usada. Tratava-se de uma bicicleta em razoável estado de conservação, preta e de roda 28, o que a tornava exageradamente grande para mim. Como sentado não chegava ao fundo da roda pedaleira, tinha de pedalar de pé, pelo que o selim me servia apenas para descanso nas descidas.

 

 

Apesar de ter sido, de longe, o melhor aluno na escola primária, as primeiras aulas na Telescola assustaram-me. É que, pelo menos na minha cabeça, sabia ler, mas ainda não sabia escrever. Valeu-me o meu irmão Zé Carlos, dois anos mais novo e a frequentar a quarta-classe, que me ajudou na reaprendizagem da escrita.

Não foi difícil reaprender a escrever e, mais uma vez, ser o melhor aluno. Para mim, a única dificuldade nos dois anos em que frequentei a Telescola era a viagem durante os dias de chuva. O frio, o gelo e esporadicamente a neve não me importunavam demasiado. O regresso de noite também não, pois a estrada, como não era alcatroada, via-se bem. Mas andar de bicicleta de inverno e com chuva no Planalto do Carril é duro, pois com roupa molhada o frio chega aos ossos.

Estava decidido que depois de terminada a Telescola não estudaria mais, pois, com cinco filhos, os meus pais não tinham condições económicas para suportar as despesas. No entanto, as pressões quer da minha vizinha (que não queria que o filho perdesse a companhia) quer de outros vizinhos que diziam que seria uma pena que não continuasse a estudar, levaram a que fosse decidido que eu e o meu vizinho iriamos estudar para a Guarda.

Como a minha vizinha não sabia nada sobre a Guarda e os meus pais ainda menos, foi pedida ajuda a um Polícia da PSP que começou por nos encontrar alojamento na casa de um colega. Os dois polícias explicaram-nos que nos iriam matricular no Curso Geral de Mecânica da Escola Industrial e Comercial da Guarda (atual Escola da Sé), pois esse era o curso mais indicado para nós, já que o Liceu era para os que iriam seguir para doutor ou engenheiro. Nas férias ajudava os meus pais na sua agricultura/pastorícia de subsistência, intercalada com atividade de contrabandista, com trabalho nas obras e com saídas incorporado na Banda de Música.

 

 

No segundo ano de frequência do curso já era considerado o melhor aluno da escola. Já quase no final do terceiro ano, o meu professor de Matemática apercebeu-se de que eu não continuaria os estudos. Falou comigo, e eu informei-o de que não era economicamente possível para os meus pais continuarem a suportar os encargos com os meus estudos, pois estava na hora de virarem as suas atenções para os meus irmãos mais novos. Sendo eu o mais velho, o mais indicado seria encontrar trabalho para ajudar a família.

Este professor falou-me então da possibilidade de concorrer a residente da Residência de Estudantes Calouste Gulbenkian da Guarda, cuja existência eu desconhecia. Aconselhou-me a concorrer à Residência e a matricular-me no Curso Completar de Mecanotecnia da Escola Industrial e Comercial da Guarda. Concorri e matriculei-me, embora com a decisão tomada de desistir dos estudos se não ficasse colocado na Residência.

 

 

Em setembro de 1976, a fazer 17 anos, fui informado de ter sido aceite na Residência Calouste Gulbenkian da Guarda. Esta tinha capacidade para 120 estudantes, tendo-me sido atribuído o número 90. Éramos quatro em cada quarto. Os quartos eram distribuídos por 2 pisos, com 15 quartos cada um, com instalações sanitárias comuns a meio do corredor. A Residência Calouste Gulbenkian garantia estadia, alimentação e lavagem da roupa de cama e a pessoal (à qual era necessário coser previamente o número, o 90 no meu caso).

 

 

Permaneci na Residência durante os 2 anos em que frequentei o Curso Complementar de Mecanotecnia (anos letivos 1976/77 e 1977/78) e durante o último período do ano letivo 1978/79, altura em que frequentava o Ano Propedêutico (correspondente ao 12º ano atual). Tratou-se de um ano escolar de transição de um ensino secundário com 11 anos de escolaridade para um com 12 anos. Este ano funcionava em modelo de “ensino-à-distância”, com aulas transmitidas pela RTP 2 durante a parte da manhã, sendo a tarde reservada ao estudo de fichas preparadas para o efeito, e havendo períodos presenciais para esclarecimento de dúvidas.

Durante os dois primeiros períodos deste ano letivo andei a trabalhar nas obras, na construção de uma moradia de um familiar emigrante em França, pelo que não tive oportunidade de assistir às aulas; como é natural, depois de um dia de trabalho nas obras não é fácil ter disposição para estudar fichas. Quando se aproximou o terceiro período senti a necessidade de me dedicar apenas ao estudo, pelo que pedi para ficar na Residência Calouste Gulbenkian.

 

 

Aceitaram-me, mas como não havia cama disponível nos quartos, colocaram-me na enfermaria. Tratava-se de um quarto de acesso direto a partir das zonas comuns, de acesso permanente, com duas camas e com instalações sanitárias próprias. A enfermaria era usada para colocar os residentes que estivessem doentes, pelo que convivi com alguma gripe e tosse, mas nunca adoeci.

Durante este período já tive oportunidade de assistir às aulas (na televisão da Residência), de estudar as fichas e de assistir às sessões de esclarecimento de dúvidas, que decorriam mesmo ali ao lado, no Liceu. Como pagamento era-me exigido apenas que “olhasse” pelos “internados” na enfermaria, que consistia em ver se estava tudo bem, medir a febre se necessário, levar-lhes a comida e recolher o tabuleiro com a loiça.

 

 

Realizados os exames nacionais de avaliação do Ano Propedêutico, candidatei-me à universidade através do Concurso Nacional de Acesso, tendo optado apenas por cursos de engenharia em Coimbra, com Engenharia Mecânica em primeiro lugar. Matriculei-me no Curso de Engenharia Mecânica da Universidade de Coimbra no dia 4 de maio de 1980, já o segundo semestre desse ano letivo ia a meio. Nessa data já não era possível concorrer a bolsas do SASUC (Serviços de Ação Social da Universidade de Coimbra), mas eu necessitava de apoio financeiro, pois o dinheiro que tinha juntado era insuficiente.

Escrevi uma carta dirigida ao Serviço de Bolsas da Fundação Calouste Gulbenkian a explicar a minha situação e a candidatar-me a uma bolsa. Apesar de a minha candidatura estar completamente fora de prazo, a bolsa foi-me concedida, e com retroativos até ao início do ano letivo. Na carta de atribuição desta bolsa era informado de que tinha sido levada em consideração a minha precária situação económica e o facto de ser um excelente estudante. Só me era exigido que passasse de ano. Mais uma vez a Fundação Calouste Gulbenkian esteve presente, prestando-me o apoio de que eu precisava na altura em que eu mais necessitava.

 

 

O meu percurso académico decorreu com sucesso, tendo terminado o curso em julho de 1984, tinha eu 24 anos. No período do segundo ao quinto ano fui bolseiro do SASUC, tendo-me sido concedido também o direito de residir numa residência universitária, no Bloco B da Residência João Jacinto, pelo que deixei de necessitar do apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. Nas férias retomava as minhas atividades “habituais” desse período, às quais se juntou mais uma, ir ilegalmente fazer as vindimas a França, o que me ocupava completamente o mês de setembro (cerca de 15 dias na região de Bordéus, seguidos de 15 dias na região de Charente).

 

 

Terminada a Licenciatura em Engenharia Mecânica, candidatei-me e fui selecionado para tirar um curso sobre gestão de empresas financiado (o FIEQ-84), na sequência do qual fui trabalhar para uma fábrica de móveis metálicos. Entretanto tive conhecimento da abertura de um concurso para dois lugares de Assistente Estagiário no Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade de Coimbra. Concorri e fui selecionado para ocupar uma dessas vagas. A partir daqui seguiu-se o percurso normal de qualquer pessoa que entrasse nessa altura para a carreira docente universitária: Assistente Estagiário, Provas de Mestrado, Assistente, Doutoramento, Professor.

A Fundação Calouste Gulbenkian apoiou-me em momentos-chave da minha vida, sendo evidente que sem esta ajuda eu não teria conseguido tirar um curso superior, ou sequer ter chegado a frequentar uma universidade. Por tudo o que fez por mim, apresento-lhe os meus mais sinceros agradecimentos e o meu profundo reconhecimento.

 

Série

Histórias de Bolseiros

Desde 1955, a Fundação Gulbenkian apoiou mais de 30 mil pessoas de todas as áreas do saber, em Portugal e em mais de 100 países. Conheça as suas histórias.

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