Manon de Boer na Coleção do CAM

Dois filmes da artista Manon de Boer foram adquiridos para a Coleção do CAM em 2021, no seguimento da exposição «Downtime/Tempo de Respiração», que decorreu em 2020.
Rita Fabiana 03 jan 2022 5 min
Obras da Coleção do CAM

A experiência do tempo perpassa o trabalho de Manon de Boer, um tempo que é anterior à realização das obras, que se materializa nestas e se prolonga na nossa relação com as imagens. Na prática artística de Manon, esta é uma experiência do tempo alargada e profundamente ancorada nas próprias condições da criação, que produz incessantemente presente e presença e resiste a uma conceção normativa e produtiva do tempo, regido pelo trabalho e pela produção de valor. Manon indaga esta possibilidade de interrupção do tempo normativo e procura ainda dar resposta – ou dar imagem – ao momento em que a criatividade irrompe e se manifesta, num tempo suspenso e liberto, em que o nada se pode tornar alguma coisa, qualquer coisa; um estado frágil de passagem fundado na descontinuidade e no fragmento, que afirma ou recupera a radicalidade do aborrecimento e a urgência do ócio.

Manon capta nos seus trabalhos uma ação que se manifesta em tempo real face à câmara, um acontecimento que funda pontes entre o dentro e o fora, entre o interior (o inconsciente, o ritmo interno do corpo, os espaços habitados onde se encontram os corpos) e o exterior (o consciente, o para lá do corpo, o para lá das construção arquitetónicas que nos abrigam, o lá fora das cidades e das paisagens naturais).

No filme The Untroubled Mind (2016), Manon de Boer ancora um primeiro gesto na busca desse momento/tempo em que do nada algo acontece, como se aqui o nada já estivesse cheio de alguma coisa. The Untroubled Mind é uma obra sobre o tempo da infância, que no filme Caco, João, Mava and Rebecca (2019), da trilogia From Nothing to Something to Something Else, se prolonga até à adolescência. A infância e a adolescência marcam uma temporalidade do desenvolvimento psíquico e corporal humano que é anterior ao tempo regulado e externalizado da idade adulta, subordinado ao trabalho e pontuado pelo ritmo exato do relógio e do calendário, mas também pela organização hierárquica da escrita, aprendidos e interiorizados na escola. O título da obra é dado por um excerto do livro Painting, Writings, Remembrances, de Agnes Martin, no qual a artista discorre sobre a inspiração e a sua relação com um estado da mente calmo e despreocupado, identificando a infância como um tempo em que a tranquilidade e o desenvolvimento da sensibilidade, e, como consequência, da inspiração, estão mais presentes. O filme mostra uma série de jogos de construções – como esculturas ou desenhos de formas e cores no espaço interior da casa – realizada pelo filho da artista, que justapõe, sobrepõe e atravessa objetos. Estas construções formam estruturas variáveis, repetidas, inesperadas, que testam e ensaiam composições e equilíbrios, que a câmara fixa regista, fixando igualmente o tempo fugidio (e perdido) da infância. O fazer do filme, como o fazer das construções, segue despreocupado, e com tempo, o inventário destas formas-esculturas que habitam transitoriamente o espaço da casa.

Na trilogia From Nothing to Something to Something Else (partes 1, 2 e 3) entram em cena os corpos num espaço interior, vislumbrando-se sempre um «lá fora». Em Caco, João, Mava and Rebecca este «lá fora» é a cidade de Lisboa, vista através de uma janela do edifício da Fundação Calouste Gulbenkian onde tem lugar as filmagens. Manon convoca adolescentes para um jogo de (des)construção e descoberta interna, propondo exercícios improvisados onde se testam as possibilidades da criatividade no contexto informal da criação de movimentos com ligações à dança. Estar e permanecer num lugar, num tempo aberto e sem orientações e expectativas evidenciadas, provoca neste «ensaio» um quase dissolver dos corpos no espaço – deitados, encostados, sentados –, colocando em contacto a maior das superfícies do corpo com a superfície do chão e com as paredes. E os corpos respiram, fazem-se ouvir a partir de dentro, sem palavras, sem outra narrativa que a sua própria existência e presença naquele lugar, no mundo. São também quatro retratos de adolescentes num tempo também ele fugidio, que a câmara revela e fixa. Há algo de minimal, de redução à presença e à potência, um quase antes da ação e a ação que se manifesta finalmente, no intervalo entre os tempos de descanso e de inação.

As obras The Untroubled Mind e Caco, João, Mava and Rebecca integraram a exposição Downtime/Tempo de Respiração que teve lugar no Espaço Projecto – Museu Calouste Gulbenkian, em 2020, tendo sido adquiridas para a Coleção do CAM em 2021.

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A Coleção do CAM reúne quase 12 000 obras de arte moderna e contemporânea. Descubra as aquisições mais recentes da coleção, as histórias que estavam por desvendar, os bastidores e os restauros, ou as narrativas escondidas no reverso das obras.

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