Manuel Botelho e a série «Confidencial/Desclassificado»
Manuel Botelho, que sempre recorreu à pintura e ao desenho, transita em 2006 para a fotografia, uma mudança de meio que vai permitir uma relação mais imediata e tangível com as questões centrais do seu percurso artístico: o conflito, a memória e a auto-representação. Contudo, mantém uma linguagem visual em diálogo com a tradição da pintura nas suas poses e composições.
Na série de fotografias Confidencial/Desclassificado, Manuel Botelho ressignifica um tempo coletivamente reprimido: a Guerra Colonial, um dos períodos mais traumáticos na história contemporânea portuguesa. O artista adota um processo performativo e simbólico ao encarnar, ele próprio, a figura do soldado. Através da encenação, Botelho transfigura a sua identidade para representar um trauma coletivo, explorando as questões da guerra, para lá da sua representação histórica.
Duas fotografias desta série, apresentadas na exposição Linha de Maré. Coleção do CAM, são representativas de dois núcleos transversais ao projeto. Um, denominado de Emboscada, explora a violência direta, a iminência da morte e a fragilidade do corpo em situações de confronto direto. O outro, Ração de combate, aborda os vestígios materiais e simbólicos do conflito, explorando a destruição que permeia o quotidiano de quem nele participa.

Um corpo caído com uma arma ao seu lado é uma imagem que alude diretamente para a violência e a morte. Em 83. embs, a pose do corpo, aliada ao seu carácter performativo, reconstroi através da linguagem visual contemporânea, uma memória do passado, evocando e atualizando o imaginário coletivo em torno de um acontecimento histórico. Nesta fotografia, o passado é estranhamente presente.

Na imagem de um solo árido e sujo, coberto de vestígios de atividade humana, descobrem-se resquícios do passado e histórias interrompidas. Na fotografia 98.rç-cmb, os objetos abandonados – baralhos de cartas, moedas, cigarros ou garrafas –aludem à rotina militar e a uma vida suspensa pela guerra. No entanto, é a mão quase impercetível, a surgir numa margem da imagem, a confirmar a ausência definitiva do corpo, da vida. Aqui, a guerra persiste tanto nos objetos quanto nos vazios por eles evocados.

A série apresenta um conjunto de imagens encenadas e meticulosamente construídas, convocando o espetador para um confronto direto com a violência, a morte e o trauma, revelando as experiências ocultas daqueles que no conflito combateram. Antes confidencial e censurado, tudo se torna visível, desvendando memórias reprimidas ou apagadas pela narrativa oficial. Ao longo de Confidencial/Desclassificado, Manuel Botelho questiona os mecanismos através dos quais a guerra é representada, lembrada ou esquecida. A dualidade entre o real e o ficcional, o documental e o performativo, reflete sobre a natureza da memória, da imagem e da história.
Na obra de Manuel Botelho, encenar a guerra é um ato de resistência contra o esquecimento, um gesto político que desafia as estruturas do silêncio e interpela criticamente o lugar da guerra no imaginário contemporâneo.