Estudo para uma fuga

O artista Nuno Sousa Vieira reflete sobre a noção de fuga, explicando de que forma este conceito influenciou o seu processo criativo neste estudo.
Nuno Sousa Vieira 17 jul 2020 3 min
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Esta é uma obra charneira no meu processo criativo, provavelmente a primeira escultura em que eu trabalho numa e com uma situação limite, definida pela matéria-prima usada para a construção da obra.

A fuga é, por princípio, um acontecimento no decorrer do qual todo o nosso corpo concorre em uníssono para efetivar uma resposta, que se pretende que seja rápida e eficaz. Por outro lado, o estudo implica uma ação com um outro tempo, uma outra ponderação, e esta obra apresenta-se desde o seu título como uma contradição ou uma negociação entre opostos.

A matéria-prima desta obra é uma porta. A porta é um dispositivo usado na arquitetura com o objetivo de estabelecer hierarquias espaciais. Os traços e registos neste equipamento enquanto objeto utilitário permaneceram visíveis; no entanto, a sua eficácia funcional ficou comprometida assim que o objeto-porta fugiu da sua ontológica condição funcional em direção ao paradigma do estético. A totalidade do objeto-porta mantem-se na obra, mas a fragmentação, o movimento e a tensão que o procedimento artístico lhe impuseram introduziram-lhe uma dimensão disfuncional. Esta situação apenas está presente porque não só aquela porta se mantém reconhecível enquanto tal, como se mantêm reconhecíveis as marcas do exercício dessa função, que são no objeto escultórico convocadas como engodo, uma vez que se mantêm presentes para intensificar a sua impossibilidade de cumprir esse desígnio inicial.

 

Vista da obra instalada no ateliê SIMALA, em 2007
Nuno Sousa Vieira, «Estudo para uma fuga», 2007. Inv. 17E1840

 

Esta fuga que o título da obra reclama é um caminho entre a fenomenologia do espaço vivido, que incorpora hábitos, expectativas, memórias, e um recetáculo que não só permite como reclama cada um desses reconhecimentos, colocando o espectador numa situação de limbo ao confrontá-lo com a discrepância entre o que a coisa é de facto e o que ela foi, permitindo a possibilidade de, sempre que a vontade assim o exigir, ela voltar a SER porta.

Esta fuga encena na minha prática criativa a possibilidade de reconstrução interna, partindo de uma reorganização de cada uma partes, efetivando-se numa fuga do abandono para o cuidado. É, neste momento, primordial informar o leitor que, aquela porta foi retirada do meu ateliê, nas antigas instalações da Fábrica de Plásticos SIMALA, em Leiria. Esta porta foi abandonada e deixada à sua sorte e, tal como pode acontecer a cada um de nós quando não tem alguém que o ajude a cuidar-se, ficou condenado ao abandono. Aquela porta foi esquecida enquanto porta, mas musealizada enquanto obra de arte, que reclama cada momento dessa sua primeira condição para se poder efetivar enquanto tal. Esta é uma fuga ao esquecimento.

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Nesta rubrica, artistas, curadores, historiadores e investigadores convidados refletem sobre a Coleção do CAM, explorando diferentes perspetivas e criando relações por vezes inesperadas. Partindo de uma obra, de um artista ou de uma temática específica, estes textos propõem novas formas de ver e pensar a Coleção à luz do contexto histórico atual.

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