Em torno da ideia de máscara

Uma análise deste conceito através de uma seleção de obras da coleção do CAM.
Patrícia Rosas 11 mar 2022 5 min
Novas leituras

«Persona significa na origem “máscara” e é através da máscara que o indivíduo adquire um papel e uma identidade social.»

— Giorgio Agamben

A procura de uma máscara, ou seja, de uma identidade, nem sempre teve um sentido negativo: na Roma antiga, lutava-se por alcançar uma máscara, com um intuito de reconhecimento social. Este «espelho», ou «reconhecimento da sua pessoa», foi durante muito tempo o modo de reconhecimento da identidade pessoal. Mas, como nos conta Agamben, há uma transformação fundamental na segunda metade do século XIX que vai alterar a ideia de identidade: a tentativa de identificar os criminosos reincidentes. A partir daqui, já não são os outros que garantem esse reconhecimento, mas «dados biológicos», isto é, as impressões digitais.[1]

A situação de dupla identidade e duplo sentido não é muito vulgar no trabalho de Jorge Molder, mas justifica em grande parte a referência à duplicidade como característica central da sua obra.

 

Jorge Molder, «Não tem que me contar seja o que for [You don’t have to tell me whatever it is]», 2006. Inv. FP537
Jorge Molder, «Não tem que me contar seja o que for», 2006. Inv. FP534

 

Na série Não tem que me contar seja o que for, constituída por 32 fotografias impressas a jato de tinta, há referências diretas ao cinema. A obra na qual podemos ver o reflexo de Henry Fonda, num espelho partido, reporta ao filme The Wrong Man [O Falso Culpado], de 1956. O espelho é aqui um fator exemplar da obra de Molder que revela precisamente essa duplicidade e fabricação de uma cópia, perspetivando e questionando o problema da imagem como dupla identidade.

A abordagem em torno da multiplicação das máscaras, que por sua vez cria a falsa ilusão das múltiplas identidades e das memórias, reflete o estado atual da persona.

Hein Semke também procurou no seu trabalho esta relação entre máscara-retrato-duplo, quer em peças de cerâmica – que, habilmente, através de máscaras-rostos representou expressões faciais –, quer por meio de aguarelas que realizou nos anos de 1950.

 

Hein Semke, «Máscara», 1957. Inv. 17CP35
Hein Semke, «Máscara», 1958. Inv. 17CP33
Hein Semke, «Máscara», 1957. Inv. 17CP36

 

Num tom mais autorreferencial, mas, contudo, envolto de uma espécie de névoa, ocultação, máscara, tecidos translúcidos que levam o rosto a formar-se e a esfumar-se, Pedro Cabrita Reis, em Os Cegos de Praga XII, autorrepresenta-se. Embora o autorretrato surja como apagamento – de praticamente todos os traços do rosto – com o contorno claro da caixa craniana, a identidade (para quem conhece o rosto do artista) é facilmente reconhecida.

 

Pedro Cabrita Reis, «Os cegos de Praga XII», 1998. Inv. 98DP1715
Patrick Collins, «The Clown», 1960. Inv. PE260

 

Gaëtan, a partir de 1981, dá novas formas ao seu rosto numa série de desenhos que são autorretratos que vai concretizar regularmente. A forma como os realiza vai variando: «Serão máscaras esses rostos desenhados? E sendo máscaras serão máscaras de teatro, de Carnaval ou máscaras funerárias?»[2] Nos cinco desenhos que compõem Troppa Lucce, os retratos do artista são modelados pela luz e pela sombra, alterando a intensidade do registo, através de um traço mais leve ou mais rígido. O registo do rosto revela uma outra identidade, também aqui persona ou duplo do artista.

 

Gaëtan, «Troppa lucce», 1998. Inv. DP1721 1-5

 

Álvaro Lapa introduz, na série que intitula Auto-auto-retratos, de 1971 e 1972, a representação do próprio corpo, contudo focado num conjunto de rostos. Completados com inscrições, traços e cores, os rostos retratados são também máscaras ou rostos ausentes, em que a obra Voici nos Acteurs é disso exemplo.

 

Hein Semke, «Carnaval», 1958. Inv. 13DP3583
Álvaro Lapa, «Voici nos Acteurs», 1972. Inv. 73P415

 

O clown, ou palhaço, é também uma persona, considerado um símbolo vivo da nossa cultura, o palhaço toca no cerne da metafísica pelo seu exagero e extrema simplicidade.

Segundo Burnier[3], clown e palhaço são termos que se distinguem, mas em que ambos têm a sua origem na baixa comédia grega e romana e nas apresentações da commedia dell’arte. Em todo o caso, procuram pôr a nu a estupidez humana e relativizar regras e normas sociais.

A figura do palhaço surgiu na cultura popular medieval renascentista em torno do riso. Ao ocupar as ruas, praças, picadeiros e palcos, o palhaço entrou também nas artes visuais, num «novo lugar». Assim, o clown apresenta-se ausente de personagem, imbuído de realidade da humanidade. O clown recupera a natureza humana, nos seus ímpetos sentimentos de alegria e tristeza, dignidade e fraqueza. Talvez por isso haja uma autenticidade do clown: o efeito da máscara está sobretudo direcionado para o exterior, criando uma figura. Ao usar a máscara revela em vez de esconder o que está dentro de si.

 

Amadeo de Souza-Cardoso, «Clown, Cavalo, Salamandra», c.1911-1912. Inv. 77DP345
Maria Helena Vieira da Silva, «Carnaval», 1978. Inv. GE408

[1] Giorgio Agamben, Nudez, Lisboa: Relógio d’Água, 2009, pp. 61-64.

[2] Gaëtan-Cavaterra, Funchal, Museu de Arte Contemporânea do Funchal – Fortaleza de São Tiago, 1999, p. 5.

[3] Luís Otávio Burnier, A arte de ator: da técnica à representação, 2.ª edição. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2009.

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Nesta rubrica, artistas, curadores, historiadores e investigadores convidados refletem sobre a Coleção do CAM, explorando diferentes perspetivas e criando relações por vezes inesperadas. Partindo de uma obra, de um artista ou de uma temática específica, estes textos propõem novas formas de ver e pensar a Coleção à luz do contexto histórico atual.

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