A Princesinha Grávida, de Paula Rego

Descubra mais sobre a obra pelas palavras da investigadora Leonor de Oliveira.
Leonor de Oliveira 02 jun 2022 4 min
Obras com histórias por contar

Em abril de 1976, Paula Rego enviou à Fundação Calouste Gulbenkian um pedido de apoio para a sua pesquisa sobre os contos de fadas e contos populares. A artista terminava o programa de trabalhos manifestando a sua intenção de «ilustrar mais prolificamente os contos tradicionais portugueses ou integrar esses mesmos contos eternos na nossa mitologia contemporânea e experiência pessoal através da pintura.» A Princesinha Grávida resultou desta investigação, que se centrava no estudo destas histórias, da sua circulação pelo mundo e da sua ilustração ao longo dos tempos[1].

 

Paula Rego, Boletim de candidatura a uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa, 26 de abril 1976. Arquivos Gulbenkian

 

Encontramos, por isso, o primeiro registo desta escultura/objeto têxtil ou «boneco», como Paula Rego designa este tipo de obras, no relatório que enviou à Fundação em 1978. A obra encontra-se acompanhada de fotografias de outros personagens que remetem para o imaginário universal dos contos de fadas (como O Príncipe Perfeito, também da coleção do CAM), que a artista compusera em pano e a que dera uma presença tridimensional. A Princesinha Grávida, designada no relatório como A Princesa Pele de Burro, aponta para a atenção que Paula Rego dá aos contos que têm como protagonistas personagens femininas, e que remetem para a experiência da mulher, sobretudo os desafios e a violência do seu percurso iniciático num mundo dominado por homens.

 

Paula Rego, página do segundo relatório de bolsa com fotografia de A Princesinha Grávida, então intitulada «A princesa pele de burro», 1978. Arquivos Gulbenkian

 

O conto que inspirou esta obra foi recolhido da compilação de Charles Perrault do século XVII. O conto descreve o assédio de um rei viúvo à sua própria filha, e aborda claramente o tema do incesto. A mudança de título para A Princesinha Grávida revela a intervenção da própria artista na história e estabelece uma versão alternativa em que o incesto, a violação e a gravidez juvenil são desfechos possíveis. A apropriação do conto por parte de Paula Rego determina ainda a própria configuração da princesinha: a cara disforme, marcada pelas costuras do pano, os cabelos de lã e os materiais simples e mundanos, afastam-na de uma beleza idealizada e inacessível e tornam-na muito próxima do mundo quotidiano.

 

Paula Rego, «A Princesinha Grávida», 1977. Inv. 78E873

 

A Princesinha Grávida resulta então de um processo criativo que interpreta subjetivamente os contos tradicionais e constitui um «universo pessoal», como Paula Rego explicou numa conversa com Salette Tavares[2]. A artista tinha já trabalhado com tecidos na criação de composições bidimensionais, como tapeçarias, mas a sua abordagem dos contos leva-a a produzir os «bonecos». Estes começam, a partir do final dos anos 1970, a habitar o seu universo criativo, ora como obras de arte, ora como modelos ou elementos das cenografias que a artista construirá, mais tarde, como base para a sua pintura.[3]


[1] V. catálogo Paula Rego: Contos tradicionais e contos de fadas. Cascais: Fundação D. Luís I: Casa das Histórias Paula Rego, 2018.

[2] Salette Tavares, «Dados para uma leitura de Paula Rego», Expresso (20 jul. 1974), p. 14.

[3] Catarina Alfaro, «Desenhar, encenar, pintar: Processos de intimidade criativa», in Paula Rego: Desenhar, encenar, pintar. Cascais: Fundação D. Luís I: Casa das Histórias Paula Rego, 2019, pp. 22 e 23.

Série

Obras com histórias por contar

Nesta rubrica, destacamos obras da Coleção do CAM que nos contam histórias que estavam por desvendar, narrativas escondidas no reverso das obras. Podem ser curiosidades, descobertas, relações ou encontros que anteriormente não tinham sido narrados ou revelados.

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