Rui Chafes e Alberto Giacometti. Gris, Vide, Cris

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Esta exposição junta obras de Alberto Giacometti a várias esculturas de Rui Chafes, criadas especificamente para a mostra.

«Gris, vide, cris»: três palavras de um poema de Alberto Giacometti, que juntam numa exposição dois artistas separados no tempo, no espaço e na forma das suas esculturas. Esta condição de separação leva-nos a interrogar o sentido deste ato de juntar dois artistas que nunca se cruzaram – Rui Chafes nasceu em 1966, ano da morte de Giacometti, não havendo elementos biográficos ou históricos que os aproximem de forma a criarmos um diálogo. Como tal, esta exposição foi concebida como um encontro.

A ideia não surgiu com base em analogias formais, mimetismos ou afinidades. Pelo contrário, foi graças à consciência das diferenças entre o trabalho dos dois artistas – e especialmente à capacidade de ressonância das suas obras – que o projeto se desenvolveu. Ambos os artistas procuram atingir a imaterialidade e a transcendência e representar o invisível, embora o façam de diferentes formas: Giacometti a partir de um trabalho de desmaterialização exasperada; Rui Chafes desafiando os limites do ferro e da imponderabilidade.

Sem se afastar da natureza da sua própria investigação, Rui Chafes propõe uma nova abordagem ao trabalho de Giacometti, uma experiência sensorial na qual o silêncio e a solidão são dominantes. Serão expostas 19 obras de Alberto Giacometti e várias esculturas inéditas de Rui Chafes, concebidas para este projeto, que conheceu uma primeira edição em 2018, na Delegação de França da Fundação Calouste Gulbenkian, e cujo conceito é agora desenvolvido e atualizado, apresentando um novo projeto de arquitetura e um novo catálogo.

Para uma das esculturas de Alberto Giacometti (o primeiro gesso de estudo para Le Nez, datado de 1947-1950), a Fondation Giacometti em Paris convidou Rui Chafes a conceber uma estrutura de suspensão, assumida como obra escultórica de dupla autoria e que será também mostrada em Lisboa.


Publicações


Textos dos curadores / artistas

Parte II. Lisboa (2023)

Helena de Freitas

Cinco anos depois de uma primeira apresentação em 2018, na Delegação em França da Fundação Calouste Gulbenkian, Rui Chafes e Alberto Giacometti são expostos na sede da Fundação Gulbenkian em Lisboa, unidos pelas mesmas palavras — Gris, Vide, Cris —, num espaço maior, diferente e com mais obras.

O tempo que decorreu entre estes dois momentos permitiu que se incorporasse a história deste encontro que, na verdade, se expandiu, no tempo e na geografia, para fora dos limites previamente previstos.

Em 2018, no espaço institucional de um prédio haussmaniano, Rui Chafes recebeu, com as suas esculturas, Alberto Giacometti, conduzindo-nos a uma primeira visão das obras do escultor suíço. Em 2020 houve uma devolução simbólica desse olhar em Stampa, na Suíça; Giacometti acolhe agora, no seu território familiar e artístico, uma poderosa escultura de Rui Chafes, Occhi che non dormono, herdeira de La Nuit, apresentada em Paris e que ficará para sempre a apontar na paisagem o lugar onde Giacometti nasceu e trabalhou.

Chegados a 2023, a exposição que agora se apresenta integra as imagens e a memória destes dois momentos e permite acrescentar um espaço de reflexão.

Mesmo sabendo que estaremos num espaço de museu totalmente diferente, com um projeto de arquitetura específico e com novas obras, é importante transmitir o essencial dessa primeira experiência simultaneamente intelectual e física. Em 2018, Rui Chafes conduziu-nos por uma via de onde foi impossível sair indiferente. A entrada na exposição fez-se pelo interior de uma escultura (Au-delà des Yeux, de 2018), espaço aberto para o negro, num percurso indecifrável e imprevisível que não permitia velocidade ou pressa e exigia um tempo de adaptação e revelação. Vagar, ou lentidão, foi por isso uma das três palavras que fez sentido acrescentar ao léxico que une os dois escultores. Encontramos logo aqui o enunciado de uma rutura, não apenas na relação espacial do visitante com a obra, que se inverte, deslocando-se do lugar passivo de observador externo, para fazer corpo com ela, como na sua relação temporal, necessariamente desacelerada.

O caminho que nos conduz a ver as obras de Giacometti pelo interior de duas das esculturas de Chafes não é fácil, faz-se através de um espaço constrito, que poderá fazer eco com o processo de exasperação que, durante anos, atormentou o artista suíço, na sua tentativa de representar o que via. O que nos leva a recuperar um dos desígnios fundamentais à construção deste projeto: a visão. Mas para recebermos essa experiência de visão e de revelação, somos introduzidos num espaço sensível, onde a emoção é possível. Enfrentamos a escuridão, o desconhecido e o desequilíbrio, ouvimos o som dos passos, sentimos o cheiro do ferro e o contraste das escalas, podemos tocar a escultura ou mesmo senti-la como invólucro ou pele, o que introduz uma dimensão sensorial a esta experiência à partida rigorosamente formal. E que, na verdade, se encontra com os sentidos presentes no seu título: Gris, Vide, Cris.

O corpo nas suas infinitas possibilidades é o centro da exposição, os corpos criados, os corpos dos visitantes e o espaço que existe entre eles.

Sabemos como as analogias formais entre os dois artistas são irrelevantes. Na verdade, o protocolo comparativo entre os escultores ou o próprio modelo da dualidade (dois artistas, um diálogo) acabam por ser ultrapassados. Para lá dessa assinatura dupla, ou da declinação formal entre objetos presentes (e há muito que sabemos que ambos os escultores não fazem objetos), o que nos é dado a experimentar é um campo de forças, atravessado pela ressonância das obras, assim como por essa energia imaterial que, de modos muito inversos, ambos os artistas perseguiram e onde acabaram por se encontrar.

No total, a exposição de Lisboa acrescenta dez obras à sua primeira edição. A imensa generosidade da Fondation Giacometti de Paris permitiu não só reservar a totalidade das suas esculturas mais essenciais, como acrescentar quatro outras, que tornam esta exposição mais densa e a sua teia de relações mais complexa. As novas obras que agora recebemos colocam desafios, impõem-se no espaço com uma corporeidade muito diferente das primeiras esculturas escolhidas, mais vulneráveis e desmaterializadas. São figuras de médio porte, pesadas e majestosas.

Uma nova série de Rui Chafes retoma alguns caminhos e avança outros, mas em todas as obras realizadas para esta nova apresentação encontramos um modo de aprofundar e radicalizar os pontos de tensão, um jogo de oxímoros também entre passado e presente. Algumas destas esculturas (Nada existe) continuam formas anteriores. No avesso destes corpos abandonados, suspensos, onde pela primeira vez o artista rasgou a pele de seda das suas esculturas para deixar entrever a rugosidade e as cicatrizes da sua construção, encontrámos as primeiras marcas deste encontro escultórico.

Tu nem sequer me vês (2021) é uma escultura mais recente, um corpo defensivo e vigilante, feito para viver numa diagonal ou esquina, como massa excrescente. Escultura-gárgula, cumpre no espaço esse seu desígnio histórico, enquanto defende, teatraliza e escoa. Esta gargouille [garganta] parece conter, na poderosa arquitetura do seu alçado de formas, uma outra configuração de grito ou de som, abafado, surdo, derramado. Em tudo oposto à forma exuberante e expansiva do sopro de morte de La Nuit, e em sintonia com a imagem dos corpos de Giacometti, silenciosos, pesados e significantes, sobre as sólidas bases que os sustentam. Será certamente no questionamento desse elemento integrante das obras do escultor suíço que Rui Chafes desenvolve as suas esculturas mais recentes, Aprendemos a esquecer I e II (2021), sobre estruturas que poderemos chamar de «planos de suporte» ou «planos de suspensão». Apoiadas nestas placas de ferro, finas como folhas e precisas como um traço (num angulo específico), estas esculturas, longe de se agarrarem ao chão, são atiradas ao céu, erguem-se como asas partidas, num gesto de projeção impossível. Como se o artista invertesse a sua funcionalidade e, num jogo ótico, suspendesse no chão as esculturas que deveriam flutuar do teto, assim mantendo a sua imponderável vocação.

Neste desafio do olhar, cinco anos depois, assistimos à transformação da luz e ao rasto que transporta. Raras vezes somos surpreendidos por uma experiência artística tão intensa, onde são colocadas de modo estruturante, não ilustrativo e em diálogo exclusivo com a matéria artística, mudanças fundamentais do paradigma estético e ético, que hoje sobressaltam o mundo das artes. Sustentado numa conversa muito antiga que tem sabido continuar com os seus pares (Alberto Giacometti, entre outros), Rui Chafes mantém aceso e desassossegado o questionamento da arte e da sua função no mundo contemporâneo.

Construída sem guião rígido nem tema de agenda, nesta exposição poderemos reconhecer a reverberação intensa do pulsar da humanidade, como aquela que encontramos em cada dedada de Alberto Giacometti.

Talvez

Rui Chafes

Em 1966, morria Alberto Giacometti e Bruce Nauman fazia a sua primeira exposição individual. Uma coincidência cronológica que sinaliza o fim e o princípio de duas carreiras separadas pelo tempo e pela geografia, mas unidas, curiosamente, pela presença de outro solitário: Samuel Beckett. Em Le dépeupleur (1968-1970), Beckett descreve o interior de um enorme cilindro com chão e parede de borracha dura. Todo o espaço é iluminado por uma fraca luz amarela. O cilindro é povoado por figuras indistintas e difíceis de caracterizar que se movimentam, incessantemente, executando rigorosas operações, percorrendo determinados percursos. Essa movimentação é, aliás, a causa dos únicos ruídos existentes no enorme silêncio envolvente. Figuras que erram sem destino, que vagueiam na penumbra, tal é o material dos cenários exauridos da escultura de Giacometti ou dos teatros cruéis de Bruce Nauman, onde as personagens repetem meticulosos movimentos, obedecendo a rigorosas e absurdas ordens superiores, vindas não se sabe bem de onde. O medo do vazio e a necessidade de dialogar no vazio: uma árvore despida, iluminada por uma pálida lua, foi o cenário criado por Beckett e Giacometti para o Godot de 1961, em Paris. A necessidade, comum a ambos, de criar um «duplo da realidade».

O caminho da negação, da redução, da austeridade e ascetismo, da discrição, tomado por Giacometti, conduziu-o à criação de um espaço calcinado. O espaço é a matéria da sua escultura: mais do que invólucros vazios, as suas figuras são espaços ou impossibilidades de ocupar o espaço. Aqui apresenta-se um testemunho do homem desprovido de qualidades individuais, o homem tornado local, lugar, espaço. O homem destruído, esburacado, dissecado, exaurido.

A secura, a rarefação radical dos propósitos figurativos e a redução da figura à sua própria tortura abriram o caminho para a escultura moderna: a escultura da consciência. Aliás, a enorme grandeza de Giacometti está na sua extrema e radical consciência, que o levou sempre a tentar a e falhar e a considerar sempre a arte como uma tentativa votada ao fracasso. A linguagem surda da impossibilidade: «Falhar e recomeçar, para falhar melhor (...), a expressão de que não há nada para expressar, nenhum poder, nenhum desejo, juntamente com a obrigação de expressar». Ao escritor e ao escultor era comum a convicção de que «aconteça o que acontecer, é necessário trabalhar sempre, tentar sempre, falhar sempre». O trabalho de ambos, a sua redução radical do medo do homem a um mundo de sombras corroídas, assustadoramente definitivo, é uma forma de humanismo desesperado e é das obras mais importantes deste século: não pela redução formal, mas pela instauração do espaço negativo como forma. O artista oferece o testemunho daquilo que lhe é possível. Só isso. Em alguns casos, já é muitíssimo. Quanto a Giacometti, é comovente (na sua dimensão trágica) a opção pelo quase-nada, pela rarefação da presença, pelo eterno falhar e recomeçar. Sobretudo verificando a capacidade que a sua obra tem para continuar o (sombrio) mito da escultura, a tradição do escultor. A capacidade de fazer isso apresentando apenas o que está entre: o que vive nas esquinas, nas dobras.

Juntamente com Joseph Beuys, Giacometti é talvez o grande escultor europeu do pós-guerra. Os dois são, à distância que o tempo nos permite, os que conseguem instaurar uma linguagem de resistência válida e sólida, capaz de ser confrontada com a vitalidade, a radicalidade, a inovação e a capacidade de afirmação (e de teorização das próprias práticas artísticas) da escultura americana. Desde David Smith, passando pela land-art, o minimalismo e o pós-minimalismo, que os escultores americanos renovaram radicalmente a história da escultura. Contudo, na Europa a escultura do pós-guerra atravessava um período de grande debilidade e ameaçadora impotência, consequência provável de desagregação moral e física pela corrosão de um continente em ruínas. Só alguns artistas europeus foram capazes de, alimentando-se dessa memória traumática, sair dos escombros e criar o corpo de uma Obra. É curioso verificar que, ao contrário de, por exemplo, Beuys, a memória no trabalho de Giacometti é uma memória não-histórica. Faz sentido recordaras incisivas palavras de Jean Genet: «Nunca, nunca, a obra de arte se destina às novas gerações. Ela é oferenda ao inúmero povo dos mortos. Que a acolhem ou rejeitam (...). Embora presentes, onde pertencem essas figuras de Giacometti, senão à morte? De onde voltam, ao mínimo apelo dos nossos olhos, direito a nós. (...). A obra de Giacometti transmite ao povo dos mortos o conhecimento da solidão de todos os seres e de todas as coisas; solidão, nossa mais certa glória! (...) Giacometti não trabalha para os contemporâneos nem para as gerações futuras: ele esculpe estátuas que arrebatam enfim os mortos». Uma arte muito dura «capaz de se infiltrar pelas paredes porosas do reino das sombras».

Sendo escultor e tendo nascido em 1966 (o ano de Andrei Rublev, de Andrej Tarkovsky e de Au hasard Balthazar, de Robert Bresson), vivo com a consciência de que é preciso continuar a transportar a chama, tal como queria Joseph Beuys que, no ano anterior, se tinha sentado, durante três horas, a ensinar a uma lebre morta como se olham as imagens.


Programação complementar

Visitas para escolas

Visita orientada: Chafes e Giacometti – conversas entre esculturas
Em português
1.º ciclo
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Visita orientada
Em português, inglês e francês
2º, 3º ciclos, ensino secundário, profissional, superior e academias e universidades seniores
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Visita à medida
Em português
1º, 2º e 3º ciclos, ensino secundário, profissional e superior
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Visitas para grupos

Visita orientada
Em português e inglês
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Ficha técnica

Curadoria

Helena de Freitas

Projeto expositivo

José Neves

Projeto gráfico

Pedro Falcão

Fotografia

Rui Chafes, «La Nuit», 2018, com escultura em gesso de Alberto Giacometti, «Le Nez» © Sandra Rocha e Guillaume Pazat

Co-organização

Mecenas

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