Entre o céu e a terra
Em fevereiro de 2022, o Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian adquiriu duas pinturas de Paula Rego (1935-2022), Anjo e O Banho Turco, enriquecendo o núcleo da coleção dedicado à artista, hoje com 37 obras. O encontro programático destas duas obras, separadas no tempo por (quase) quatro décadas e por pesquisas e expressões plásticas distintas revela, a um olhar comparativo, um vai e vem de afinidades e cintilações. E confirma a determinação firme de Paula Rego em colocar, através de diferentes recursos e pontos de vista, a mulher no centro do seu pensamento e ação enquanto artista.
Anjo é uma das pinturas mais icónicas de Paula Rego, revelando-se quase como síntese da sua produção artística. Identificável e nomeada como sendo um anjo, vemos afinal a figura de uma mulher bem terrena, vingadora e piedosa, segurando nas mãos uma espada e uma esponja, dois dos símbolos da Paixão de Cristo. Não sendo explicitamente um autorretrato, é certamente uma imagem autorreferencial que se identifica com o sentido interventivo do seu trabalho: entre a proteção e a vingança, o castigo e o perdão.
Esta obra integra a série de trabalhos dedicada ao romance de Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro. O livro, que causou protestos da Igreja católica por denunciar a hipocrisia do celibato clerical e da morte consentida dos recém-nascidos ilegítimos, foi de leitura proibida no tempo da sua turbulenta publicação em Portugal (1875). Anjo oferece à artista matéria ficcional privilegiada e é exemplo do modo não ilustrativo como a artista intervém sobre as histórias que trabalha: neste caso, introduzindo um elemento inesperado que distorce o desfecho do romance: o anjo, que na realidade é uma mulher, «vinga a rapariga que morreu. É uma invenção minha», afirmou a artista.
A segunda pintura adquirida na ocasião foi O Banho Turco (1960). Intencionalmente realizada no verso de um nu da artista, pintado por Victor Willing, seu marido, a obra é uma releitura crítica da pintura neoclássica de Dominique Ingres, Le bain Turc (1859). Ingres concentra, num elegante tondo, os corpos erotizados de 25 odaliscas. Paula cita esses corpos de modo distanciado, retirando-lhe todo o erotismo, desmanchando-os. Mas talvez o diálogo oculto que estabelece com o seu retrato de nu, no verso, seja o mais significativo subtexto da obra e possa ser compreendido como uma primeira sinalização, de plena consciência feminista, na sua obra. Pintura de início de carreira, coloca a artista num tempo de notável antecipação a temas que ainda hoje agitam o mundo das artes, em Portugal e no mundo.
A apresentação destas pinturas integra-se no propósito de destacar obras da Coleção do CAM em lugares inesperados e mais próximos do público.
Helena de Freitas