Aquisições ao Hermitage por Calouste Gulbenkian
O Museu do Hermitage foi criado em 1764, sob o alto patrocínio da imperatriz Catarina II, “A Grande” (1729-1796). Aberto ao público apenas no ano de 1852, o Museu reunia, já nessa altura, um conjunto de cerca de 3 milhões de peças, onde se incluía a maior coleção de pintura do mundo.
No dia 7 de novembro de 1917 (25 de outubro segundo o calendário Juliano adotado pela Igreja Ortodoxa Russa), em São Petersburgo, dão-se os acontecimentos que conduziriam ao nascimento da União Soviética e ao estabelecimento do Comunismo.
Como consequência desta nova realidade, o Museu do Hermitage, assim como os outros edifícios do complexo Hermitage, nos quais se inclui o Palácio de Inverno, foram declarados pelas autoridades soviéticas “Museus Estatais”.
O prestígio e a dimensão das coleções do Museu aumentaram quando o Estado Soviético, em pleno fulgor revolucionário, nacionaliza um conjunto significativo de coleções de arte privadas que estavam, até aí, à guarda dos inúmeros palácios propriedade da Família Imperial e da elite russa.
O Kremlin solicita ao “Comissariado do Povo do Comércio Externo” um conjunto de medidas que possibilitasse o reforço dos cofres estatais em vários milhões de Rublos/Ouro, com o objetivo da “revitalização e implementação da industrialização socialista”.
É neste contexto que surge o ANTIKVARIAT, adstrito ao Gostorg da RSSFR (Escritório Estatal de Importação Exportação fundado em 1922), que passa a tutelar diretamente mais de 2.700 obras de pintura (entre outras obras de arte) com um único propósito: a venda.
Esta operação de alienação de obras de arte e antiguidades pertencentes às coleções museológicas à guarda do Estado ficaria conhecida na historiografia russa como “Operação Hermitage”.
Só em 1929 foram transacionados cerca de 1.052 objetos no valor correspondente a 2.2 milhões de Rublos (à época cerca de 1.1 milhões de Dólares). O pico de vendas ter-se-á registado no ano de 1931 (9.5 milhões de Rublos), tendo a crise económica de 1929, que provocou o afundamento do mercado internacional de arte, contribuído para a quebra do número e valor das transações. O ano de 1934 marca o fim deste movimento de vendas e a conclusão da “Operação Hermitage”, com a aquisição, pelo British Museum, do Codex Sinaiticus.
Em 1937 o ANTIKVARIAT é extinto.
Estima-se que o Estado Soviético tenha conseguido transacionar com o exterior cerca de metade das obras à sua guarda. Foram repartidas por coleções privadas e museus estatais mais de 1.400 pinturas de autores como Van Dyck, Rembrandt, Velázquez, Botticelli e Tiepolo. Grande parte destas transações realizou-se tendo por base valores que corresponderiam a metade, ou mesmo a um quarto, do valor de mercado das peças.
O interesse de Calouste Gulbenkian na aquisição de obras de arte pertencentes ao espólio do Hermitage remonta a 1922. Desde então, e até 1929, ano em que concretiza a primeira das suas quatro operações de compra, Gulbenkian promove uma série de contatos com o propósito de, junto das autoridades russas, conhecer, avaliar, selecionar e, por fim, adquirir as obras que mais lhe interessavam.
O envolvimento do colecionador na “Operação Hermitage” não é alheio à relação de amizade que cultiva com o magnata e filantropo A. Chester Beatty (1875-1968), com quem, a partir de 1920, desenvolve esforços no sentido de garantir o controlo sobre concessões de mineração em território russo.
Gulbenkian, pela via dos negócios, desenvolvera também junto das autoridades soviéticas uma rede intricada de ligações que cruzava conhecimentos profissionais e pessoais, potenciadas pela sua expertise técnica na área petrolífera, na mineração e na banca. Aos olhos do Kremlin e de diversas figuras chave da nomenklatura soviética, o seu estatuto e autoridade eram reconhecidos. Georges Piatakoff (presidente do Banco Estatal russo), a par de outros responsáveis e representantes governamentais, foram fundamentais para a implementação de um verdadeiro “lobby Gulbenkian” junto de Moscovo.
Em julho de 1930, num extenso memorando enviado a Piatakoff, Calouste Gulbenkian apresenta a sua visão relativamente à “Operação Hermitage”, mostrando-se contra este movimento que considera negativo e lesivo para o futuro das gerações russas: ”(…) vous savez que j’ai toujours maintenu la thèse que les objets qui sont dans vos musées depuis de longues années ne doivent pas être vendus car, non seulement ils représentent un patrimoine national, mais ils constituent encore un grand fond d’éducation en même temps qu’une grande fierté pour la Nation, (…)”
Adverte também para aquilo que designa como “(…) la psychologie et la mentalité des dirigeants de crédits à l’étranger (…)”, mais interessados no lucro próprio do que necessariamente nos interesses do Governo soviético.
Por fim, Gulbenkian revela a sua astúcia negocial, declarando: “(…) je continue à le conseiller à vos représentants, de ne pas vendre les objets de vos musées, mais, si vous alliez vendre, de me donner la préférence, à prix égaux, et je leur avais demandé de me tenir au courant des objets que vous désireriez vendre”.
O trabalho de consulta e estudo dos catálogos do Hermitage, a análise dos lotes de peças, a sua avaliação e posterior seleção contaram com a participação direta de Calouste Gulbenkian e com o suporte técnico e parecer de diversos especialistas.
O historiador da arte Schmidt-Degener (1881-1941) e os joalheiros Marcel Aucoc e André Aucoc estiveram, desde a primeira hora, envolvidos em toda a operação. Estes especialistas tinham como missão avaliar as peças in situ – Leningrado e Moscovo –, e elaborar relatórios detalhados sobre o valor dos objetos e estado de conservação, decisivos para a decisão final sobre a aquisição. Gulbenkian era particularmente exigente com as questões ligadas à autoria e à autenticidade das obras, exigindo minúcia e pormenor na análise: “Les quatre premiers tableaux doivent être les originaux – ceux que vous avez vu à l’Ermitage – et doivent se trouver en excelente état.”
Com base nestes elementos o magnata negociava diretamente, em Paris, com os responsáveis do ANTIKVARIAT (aí sedeado junto da “Representação Comercial Russa” em França), de onde se destacam Grigor Samuell, M. Birencweig, N. Toumanoff. O processo negocial implicava, quase sempre, alterações de última hora às listas das obras “selecionadas”, para além da discussão do preço e condições de aquisição. O valor da transação era estabelecido entre as partes e firmado na condição das peças serem entregues em perfeito estado de conservação.
As obras adquiridas por Calouste Gulbenkian dividem-se, essencialmente, em quatro categorias: Ourivesaria, Mobiliário, Pintura e Escultura.
Em abril de 1929, Calouste Gulbenkian fecha o 1ère achat (primeira compra), no valor de £54.000 Libras Esterlinas, que compreendeu: 24 peças de um lote de pratas datadas do século XVIII, da autoria de François-Thomas Germain; uma mesa Luís XVI; dois quadros de Hubert Robert, Le Bosquet des Bains d’Apollon e Le tapis vert; um quadro de Dierick Bouts, Anunciação.
Entre fevereiro e março de 1930, conclui-se o 2ème achat, que acrescenta à sua coleção novas obras no valor de £155.000: quinze peças de um lote de pratas e um quadro de Peter Paul Rubens, Retrato de Helena Fourment.
O 3ème achat é fechado ainda em 1930, no mês de junho, pelo valor de £140.000. Nele se incluem: 5 quadros de Rembrandt, Titus e Palas Atena, e de Lancret, Watteau e Ter Borch, e a escultura Diana, de Jean-Antoine Houdon.
O último momento de aquisição, ou 4ème achat, ocorre em outubro de 1930 e corresponde à obra Figura de Velho, por Rembrandt, no valor de £30.000.
Gulbenkian impôs critérios rigorosos relativamente às questões da embalagem, acondicionamento e transporte das peças, demonstrando, também aqui, pleno domínio técnico.
Consciente da enorme distância que os objetos teriam de percorrer e das vicissitudes a que, consequentemente, estariam sujeitos durante a viagem, procurou assegurar-se do cumprimento de condições essenciais à redução dos riscos envolvidos no transporte: “Il est bien entendu que vous prenez bonne note de mes recommendations d’employer un nombre suffisant des caisses, afin de chacune ne contienne q’un nombre restreint de pièces ceci dans le but d’amoindrir les risques de transport.”
Ainda que a embalagem e o transporte das peças fossem da responsabilidade das autoridades soviéticas, o colecionador enviou a Leningrado técnicos da sua confiança que aí supervisionaram o processo de embalagem (como o especialista embalador francês Edouard Leblond).
As aquisições viajaram de Leningrado através da Alemanha ou de Londres, por via ferroviária ou marítima. De modo a obviar a embaraços alfandegários, os contentores tinham como destinatária a Legação Persa em Paris, representada pelo próprio Calouste (à data Conselheiro Financeiro da Legação), expediente este que tinha o aval do Ministério dos Negócios Estrangeiros francês e do Ministro Plenipotenciário persa, em Paris.
Os contentores eram minuciosamente verificados na presença das autoridades aduaneiras, controlo este levado a cabo pelo próprio Gulbenkian ou por representantes por si designados, como o “marchand” alemão Francis Zatzenstein (1897-1963). Esta inspeção tinha como objetivo garantir, antes do pagamento, que as obras se mantinham em excelentes condições de conservação e, mais importante, que correspondiam às peças saídas do Hermitage dias antes.
Relativamente aos custos adicionais envolvidos, a divisão era simples: fretes, taxas e direitos aduaneiros relativos ao território da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas seriam suportados pelo Governo soviético; Gulbenkian cobriria os custos fora do espaço territorial russo.
O pagamento era efetuado por cheque no ato da entrega da peça, ou seja, presencialmente: “Inutile de vous [Aucoc] recomender de prendre toutes les précautions possibles pour la protection du chèque ci-inclus que vous emporterez avec vous afin qu’il n’arrive aucun accident. J’ai préféré vous donner ce chèque au lieu de le faire passer par une Banque afin de hâter l’opération.”
Os Arquivos de Calouste Gulbenkian à guarda da Fundação, em particular a documentação proveniente de Paris e Londres, reconstituem de forma exaustiva toda a operação de aquisição de Arte ao Hermitage. A leitura e análise dos documentos reunidos no “Dossier Russie” permitem cartografar o processo burocrático, financeiro e logístico de todo este movimento, possibilitam uma aproximação à personalidade do colecionador e ao seu modus operandi no plano dos negócios e da Arte, confirmando aquela que é uma das suas mais conhecidas máximas: “Only the best is good enough for me…”
Dos Arquivos
Momentos relevantes na história de Calouste Gulbenkian e da Fundação Gulbenkian em Portugal e no resto do mundo.