Paredes que falam
Em 2001, centenas de barracas que formavam um dos maiores e mais antigos bairros de lata de Lisboa – a Curraleira, entre a Praça Paiva Couceiro e as Olaias – desapareceram. Com as demolições, os moradores foram realojados em novos empreendimentos e em novos bairros espalhados pelo Vale de Chelas. A Curraleira, onde agora passa uma estrada, morreu no mapa, mas continua viva nas memórias de pessoas como Mário Maia e João Alves, que ali cresceram. Os dois guiam-nos numa visita ao projeto PA-REDES, financiado pelo Programa PARTIS da Fundação Calouste Gulbenkian, uma das linhas de força da Fundação no apoio a projetos de inovação social.
O roteiro desta visita inclui vários murais de arte urbana produzidos no âmbito do projeto dinamizado pelo Clube Intercultural Europeu, pela associação de moradores “Viver Melhor no Beato” e pela AAAFBL – Associação de Antigos Alunos da Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, e liga pontos estratégicos que formam a identidade e a memória comunitária deste território.
No alto de um descampado, de onde se avista o cemitério do Alto de São João, para um lado, e, para o outro, blocos de habitação social, ergue-se uma cruz que assinala a morte de uma criança num forte incêndio que ocorreu na Curraleira em 1975. Essa criança voltará a ser evocada num mural mais à frente, junto a um parque infantil. Aqui, no sítio da cruz, nunca mais se fizeram barracas. Passou a ser um largo onde se jogava à bola e a cruz também servia de ponto de salvação para as crianças quando jogavam à apanhada. João lembra-se bem dessas brincadeiras, quando ainda existia a Curraleira. Agora tem cerca de 30 anos e um papel proativo no bairro onde cresceu, através da associação de moradores da Quinta do Lavrado “Geração com Futuro”, que dinamiza. Vai desfiando essa memória de infância, entre muitas outras, ao longo de um passeio a pé de cerca de duas horas que permite descobrir uma zona esquecida de Lisboa, longe do bulício turístico e da gentrificação imparável de uma cidade nas bocas do mundo.
O projeto PA-REDES começou nos bairros João Nascimento da Costa e Carlos Botelho, mas acabou naturalmente por se estender à Quinta do Lavrado e ao Bairro do Horizonte, porque foi sobretudo nestes quatro bairros que as pessoas foram realojadas – e se dispersaram – depois de serem demolidas as barracas onde habitavam.
“Não vi, não ouvi e não falo”
No âmago deste projeto de arte urbana e da construção de um roteiro para o visitar está um trabalho de marcação de uma narrativa do bairro: “Não é um percurso fácil e quem o fizer sozinho não vê nada. O interesse está nas histórias que as pessoas vão contando”, diz António Brito Guterres, da Fundação Aga Khan, instituição parceira do projeto, tal como a Santa Casa da Misericórdia e a GEBALIS.
A família de Mário, pais e avós, vivia na Praça do Chile. Como eram parte da comunidade cigana, foram sendo “empurrados” para a Curraleira. Hoje Mário é claramente uma referência no bairro, todos o cumprimentam, os moradores ouvem-no e respeitam-no. Fala-nos do União Clube da Curraleira, onde costumava parar com os amigos e que agora está inativo. Outra das paragens faz-se no Chafariz do Alto do Pina, um bairro conhecido pelo seu protagonismo nas marchas populares de Lisboa. No chafariz, as pessoas abasteciam-se de água, mas era também um ponto de encontro, numa altura em que a água canalizada era uma miragem naquela parte da cidade. Encontraremos a água presente em vários murais – é um elemento central, nos baldes que a carregam mas também nos tanques do antigo lavadouro.
Cada um dos grandes murais tem os seus “padrinhos” e “madrinhas”, moradores designados pela comunidade. Inspirados pela metodologia de outro projeto de arte urbana desenvolvido no Bairro da Torre, em Cascais, os moradores têm participado na realização do mural fazendo a ligação com a população local, animando assembleias em que se discutem as memórias do bairro, mobilizando e operacionalizando a logística para a pintura das paredes. Entre os artistas que já colaboraram com o projeto PA-REDES contam-se Francisco Camilo, Victor Feijó, Telmo Alcobia e o coletivo ARM (gonçaloMAR e Ram Miguel).
O percurso acabará num dos murais que agora marca a paisagem no Vale de Chelas. Os padrinhos chamaram-lhe “Não vi, não ouvi e não falo”. Magda Alves, do Clube Intercultural Europeu e coordenadora do projeto, explica: “Refere-se a dinâmicas internas dos bairros, mas também tem a ver com a forma como os bairros são vistos pelas pessoas de fora, que não sabem nem querem saber o que lá se passa, não entram no bairro, baseiam-me apenas em estereótipos e preconceitos. Portanto, o mural pode ter esta leitura dupla.”
No Vale de Chelas, há estradas sem saída que acabam abruptamente, construídas para servir de rampa à ponte sobre o Tejo que nunca saiu do papel; há lixo e entulho um pouco por todo o lado; há uma ETAR e há uma estação de alta tensão, apesar dos protestos da população. Há prédios com entradas viradas para o muro do cemitério, uma aberração que resultou de imposições administrativas. E há muitas outras coisas indesejáveis e invisíveis à luz do dia. Mas também há famílias, há crianças, há cafés animados, e até pequenas “quintas” com animais bem cuidados. Há moradores empenhados em melhorar o bairro e orgulhosos de dar a conhecê-lo.
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