O Acesso à Cultura em debate
No segundo dia de “Cenários Presentes”, em Torres Vedras, falou-se dos desafios da arte participativa, do seu lugar na programação artística e do papel político da arte, num conjunto de mesas redondas e conferências que juntaram representantes de organizações artísticas, convidados e membros do público interessados nestas temáticas.
Este encontro marcou o fim do segundo trimestre do programa Atos, inserido na Odisseia Nacional do Teatro Nacional D. Maria II. Desenvolvido em parceria com a Fundação Calouste Gulbenkian, o Atos viabiliza 43 projetos de arte participativa, distribuídos por 43 concelhos e dinamizados por 16 estruturas artísticas, que pretendem valorizar o tecido cultural nacional e promover as práticas cívicas das comunidades que ali residem. Entre janeiro e julho, o programa percorreu vários locais no norte e centro do país.
Fazer projetos com – e não para – as pessoas
Nas mesas redondas que abriram a programação da manhã, subordinadas ao tema da Arte Participativa e distribuídas pelos três eixos temáticos do programa (Pessoas, Paisagens e Património), foram levantados problemas comuns às práticas artísticas participativas, que se verificam dentro e fora do Atos.
Entre outros, destacou-se a falta de recursos e financiamento das entidades artísticas; a necessidade de refletir sobre o que se faz, avaliar e adaptar os processos às comunidades e territórios onde se trabalha, evitando a aplicação de um modelo único; o perigo de “instrumentalizar as pessoas”, impondo-lhes uma vontade de transformação que não é mútua; e ainda a escassez de oportunidades de participação que existem, muitas vezes também limitadas a curtos períodos temporais, tornando mais difícil chegar a participantes de diferentes origens e com menor acesso a estas práticas.
Como possíveis soluções ou orientações para o futuro, falou-se na construção de alianças entre entidades e na desconstrução de conceitos; na necessidade de dar tempo e continuidade aos projetos, tornando-os sustentáveis a longo prazo; de trazer o espaço de criação para fora das organizações culturais e dos seus edifícios, que podem ser lugares intimidantes e difíceis de entrar; e de criar métodos de avaliação destes projetos e processos.
Referiu-se ainda a importância de criação de mecanismos de escuta, que permita fazer projetos com as pessoas, adaptados às suas vontades e necessidades, e evitar uma lógica “colonizadora” de quem chega ao território.
Criar a partir de folhas em branco
Ricardo Baptista e Ana Bragança, da associação Ondamarela, desenvolveram projetos em Vila Real e Castelo Branco. O processo de trabalho é sempre mais ou menos o mesmo, dividido em três momentos: “uma primeira fase de investigação em casa e relação com os mediadores locais, outra de encontro com as comunidades e as pessoas inscritas na convocatória em sessões exploratórias, para perceber de que queremos falar enquanto grupo, e só depois desenhamos e montamos o objeto final”.
Em ambos os casos, o resultado final foi uma performance, construída em conjunto e apresentada num momento de partilha pública – “Vida Real”, que partiu de uma sinopse cheia de espaços em branco para ser completada pelos participantes, e “Nós, quem somos?”, que partiu da palavra, da música e do teatro para fazer ouvir uma nova comunidade.
“O nosso processo habitual é ir para os territórios de folha em branco, ou seja, levantamos algumas dinâmicas, perguntas, desafios, mas não vamos com uma ideia pensada, nem sequer tema”, explica Ana Bragança. Neste contexto, “a presença ou ausência de estruturas locais de mediação faz toda a diferença”. “Muitas vezes as pessoas vêm às sessões exploratórias e ao fim de cinco minutos ganharam confiança e acabam por ficar. Mas a dificuldade é chamá-las e fazê-las passar pela porta”, acrescenta Ricardo.
Com o desafio sempre exigente que é desenvolver um projeto de participação num espaço de tempo muito limitado, numa comunidade que não se conhece à partida, o balanço das duas experiências é positivo, para os dois, pelas mesmas razões: um objeto final que espelha, de uma forma “genuína e transparente”, o trabalho que foi feito, em que “as pessoas que participaram se identificam com o que está ali, sentem que faz parte delas”; e o legado das relações que ficam nos grupos criados.
“Um processo de aprendizagem para a democracia da cultura”
Para Luís Sousa Ferreira, adjunto da direção artística do Teatro Nacional D. Maria II, este tem sido um processo muito transformador para as duas instituições parceiras. Um projeto participativo como o Atos é, nas suas palavras, “um projeto de cedência de controlo e de poder, de partilha” e, como tal, o “o discurso, a forma de trabalhar, a gestão das necessidades das equipas e até o olhar, a condescendência, o paternalismo, a seriedade com que olhamos estes projetos mudou bastante”.
Estes “dois olhares sobre o mesmo objeto de ângulos diferentes e complementares” têm possibilitado uma “radiografia do país” e a construção de um novo método de ação para “gerar desconforto onde há conforto e criar conforto onde há desconforto”, que é, no parecer do diretor adjunto, “um processo de aprendizagem para a democracia da cultura”.
Já Fátima Alçada, responsável pelo acompanhamento dos projetos do lado da Fundação Gulbenkian, refere que ao longo destes primeiros seis meses “ficou claro que havia um enorme desconhecimento das equipas que estavam no terreno em relação ao território”. Este é por isso, na sua opinião, “um belo primeiro passo para percebermos o país que habitamos em termos culturais” e “como traçar projetos futuros de envolvimento no território com estas e outras comunidades”.
O acesso à cultura é uma das principais bandeiras da Fundação Gulbenkian para a sua estratégia nos próximos anos. Com projetos como a iniciativa PARTIS & Art for Change, com a Fundação “la Caixa”, o Award for Civic Arts Organizations, no Reino Unido, e a parceria com o TNDMII, alarga-se um trabalho que, citando uma das responsáveis por esta área, Narcisa Costa, permite “tornar a arte mais presente no quotidiano das pessoas” e, sobretudo, “criar uma consciência nos territórios e comunidades da sua própria voz e da capacidade de fazer parte das escolhas e decisões”.