O Lado P do confinamento
“Nós somos os ratos que os ratos roerão
Vivemos a morte verão a verão
Meus relatos são fatos, os gatos não verão
Caçador e caça se inverterão,
Cada um na sua casa até ao fim do inverno,
Cada caso é um caso, nos vemos no inferno”
Assim começa o poema de Felipe Marques, recluso no Estabelecimento Prisional de Caxias, com a data de 25 de abril de 2020. É uma carta. Uma nota no canto superior direito da folha explica: “Essa eu comecei em uma madrugada qualquer e aproveitando o incentivo dei mais umas linhas hoje. Reflete o quotidiano aqui mas ainda não terminei”.
Este poema está entre as muitas cartas trocadas durante os longos meses de quarentena, entre os reclusos desta prisão e a equipa artística do projeto Lado P, apoiado pela Fundação Gulbenkian no âmbito da iniciativa PARTIS – Práticas Artísticas para a Inclusão Social.
“Em 2019, o nosso programa PARTIS estava numa fase inicial de capacitação, não só técnica como artística, do grupo de reclusos participantes” conta Filipa Reis, diretora artística do projeto. O primeiro ano do Lado P teve como objetivo trabalhar com os reclusos “por dentro”, através de um curso de técnicas audiovisuais, certificado pela escola da World Academy, e de um conjunto de oficinas de escrita e teatro lideradas pelo Teatro do Silêncio, promotor do projeto. No fim de 2019, foi apresentado um espetáculo a que assistiu toda a comunidade prisional – guardas, membros da direção, educadoras – e as famílias dos participantes.
No segundo ano, o projeto estende-se um pouco mais às famílias e “abre à sociedade”: “o nosso princípio é não só trabalhar a capacitação de cada um dos reclusos para aumentar a probabilidade de integração social, como também trabalhar a sociedade, quem os recebe”, diz a diretora artística. Nesse sentido, será produzida uma série documental de 13 episódios, financiada pela RTP e pelo Instituto do Cinema, em que os reclusos são os protagonistas. Para que a mensagem passe de dentro para fora.
Foi neste ponto que a pandemia surpreendeu a equipa. Decorriam filmagens duas vezes por semana, numa sala do estabelecimento prisional, quando, em março, as visitas à prisão foram suspensas.
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Uma dificuldade transformada em oportunidade
Um dos principais exercícios que estavam a desenvolver para a série era o formato de videocarta. Por força da quarentena, estando os reclusos impedidos de usar meios audiovisuais sozinhos dentro da prisão, a equipa começou a preparar um conjunto de propostas artísticas que pudessem ser enviadas por escrito, pelo correio tradicional.
Nestas cartas, os enunciados sugeriam diferentes exercícios diarísticos, como “Hoje vou escrever um poema, ou um texto. Quem sabe a letra de uma futura música? Será sobre um sentimento ou um acontecimento? A quem é dirigido?” ou “Desenho sobre o meu futuro” ou “Registo de uma cena que me tenha marcado no dia de hoje, seja na cela, no pátio, entre colegas”. E as cartas, os poemas, os desenhos foram chegando.
Podemos dizer que o tema, para estas pessoas confinadas numa prisão, já não era novidade – mas nem assim ficaram imunes aos efeitos da pandemia. Filipa Reis explica que, neste caso, “o confinamento é muito pior do que para nós, porque todas as alegrias que existiam durante a semana foram retiradas, fosse de visitas como nós, fosse de visitas de familiares. Portanto, é quase um confinamento ao quadrado”. E isto é, certamente, uma situação difícil de imaginar para alguém que vive em liberdade, “mesmo depois de ter vivido numa situação de confinamento”.
Não será por isso de estranhar a adesão dos reclusos a estes estímulos, à possibilidade de exteriorizar uma realidade sufocante e solitária. “Recebemos um conjunto de material tão interessante que agora a fase em que estamos é a de tentar abrir ainda mais esta ideia de parceria artística (…). Estamos a tentar convidar artistas de outros campos das artes e pôr esses artistas em diálogo com o material que foi produzido”, conta Filipa. E acrescenta que “é esta a grande conclusão do efeito da pandemia no nosso projeto. Perante esta dificuldade nós identificamos outras oportunidades. Em vez de parar, continuámos, e esse continuar transforma-se noutra coisa”.
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Até hoje, ainda não foi possível recomeçar as filmagens em Caxias, mas a equipa está confiante de que em breve poderá voltar ao trabalho. Além da série documental, que deverá estrear na RTP2 em 2021, o projeto prevê também a realização de um filme, sempre numa dupla lógica que junta o eixo da comunidade prisional com o eixo da comunidade artística, a comunicação com a família mais próxima (biológica ou emocional) e a comunicação alargada à sociedade. E consciente de que “este diálogo entre participantes e comunidade artística é tão mais rico quando mais diversificado for”.
Não faltam os desafios para o caminho, individual e coletivo, que traça o Lado P. Felizmente, a arte participativa tem este condão de ajudar a transformar obstáculos e barreiras em portas que se abrem para novas abordagens. Assim diz Pablo Santos, um dos participantes, numa audio carta que escreveu para o seu “eu” de 12 anos:
Vai de peito aberto,
vai dar certo,
confiante que o distante num instante fica perto.
Fique esperto.
Vai, com força de vontade
Vai à vera, não espere a oportunidade.
Nunca é tarde.