Quando a subida ao palco é apenas um pormenor
Aquela sessão prometia. Elsa Serra, a contadora de histórias que dinamiza o projeto Histórias tecidas entre vizinhos, tinha acordado cedo. Era o 23º aniversário da filha e tinha muito que fazer. A filha tinha acordado bem-disposta, a dizer que estava muito feliz e esta felicidade tinha-se colado à pele e à voz da mãe e, através desta, irradiava pela sala das tapeçarias do Museu Calouste Gulbenkian, onde 17 participantes no projeto ansiavam pela leitura do resultado do trabalho das últimas semanas.
Tudo tinha começado uns meses antes, com uma pergunta: “Pode uma obra de arte, num museu, contribuir para o bem-estar individual?”, que é também parte do tema do Dia Internacional dos Museus (dedicado, em 2023, à Sustentabilidade e Bem-Estar). Bastaria pôr-se ao leme e cavalgar esta onda.
A visita ao Museu já fazia parte da rotina de muitos daqueles visitantes, sentados à volta de Elsa Serra. Desde 2017 que a Fundação, através do projeto Entre Vizinhos, leva ao Museu utentes das instituições seniores da freguesia das Avenidas Novas, promovendo o contacto com a arte e o envolvimento em processos artísticos colaborativos – ou, genericamente, o envelhecimento ativo. Mas este ano a proposta era diferente.
O grupo haveria de deter-se numa obra específica – Jogos de Crianças, uma armação composta por quatro tapeçarias tecidas, nos séculos XV e XVI, em lã, ouro e prata, sobre os cartões do pintor renascentista Giulio Romano. Três destas tapeçarias haviam sido compradas por Calouste Gulbenkian em 1920 para decorarem a sala de jantar do seu palacete de Paris.
Sentados à frente da enorme parede, Adelaide, Arminda, Augusto, Fernanda, João, Rui, Zezinha e restantes companheiros de atividades recuaram no tempo e, ao longo de semanas, foram desfiando memórias dos seus próprios jogos de crianças, distribuindo os fios das histórias que depois Elsa haveria de entrelaçar em quatro pequenos contos. A seu lado, Sofia Freire de Andrade ajudaria a criar a trama com lã e algodão, palavras soltas e fotografias antigas num tear de três metros e meio de comprimento que seria levado, no Dia Internacional dos Museus, ao conhecimento do público, no Museu Gulbenkian.
Histórias de tamancos, xixis e feitiçarias
Elsa lançou-se numa leitura pausada, muito expressiva:
Num dia em que o tempo não era tempo, nasceu um embalo entre uma árvore e um baloiço.
Chamava-se Inocência, a árvore, e todas as pessoas da aldeia a conheciam. Inocência protegia a aldeia e, por proteger a aldeia, os aldeões um dia resolveram pôr nela um baloiço para criarem o embalo.
Porque nesta aldeia já não havia baloiços nem embalos: Fazia muito tempo que não havia crianças. Fazia muito tempo que já não havia madeira em abundância para fazer rulos e embalá-las. Fazia muito tempo que não se viam mulheres com todo o seu poder, a carregar um bebé durante 9 meses. E diziam que foi desde que uma mulher teve mais de seis filhas e que a sétima nasceu feiticeira.
Em tempos idos tinha sido uma aldeia onde havia muita neve, árvores do rio, árvores de fruto, videiras, uma abundância e, claro, uma correria de crianças.
As crianças, na sua inocência, roubavam frutas, corriam para a escola descalças, deixavam os tamancos em casa para chegarem mais depressa, (eram muito pesados) e levavam raspanetes (…)
Augusto Campos lançou uma gargalhada discreta. Ria-se daqueles tamancos que, inspirados nos seus, eram deixados para trás para não atrapalharem a pressa com que tinha de ir para a escola. Afinal, Vila Pequena, onde vivia, e Dornelas, onde frequentava a instrução primária, ainda distavam de um par de quilómetros. Uma eternidade tanto para uma criança transmontana a caminho da escola como para um jovem apaixonado. O rapaz de Vila Pequena e a rapariga de Dornelas haveriam de casar e encurtar as distâncias, fazendo vida em Lisboa.
Seguiram-se as outras duas histórias.
(…) um dia quis fazer algo diferente, pescar no rio, e o seu melhor amigo, o Ricardo, pregou-lhe uma partida, chhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh, fez-lhe xixi na cabeça, é um bocado chato (…)
Por trás de Elsa, no meio das crianças a brincar no meio das flores ou em cima das árvores, sobressaía, como João haveria de mostrar noutro dia, um rapazinho a fazer xixi para a cabeça de outro, que tomava banho no rio. Era a prova de como a obra de arte do Museu também pode fazer parte da vida de cada um destes seniores.
(…) Tal como a mãe, gostava de trepar às árvores para poder apreciar o chão daquela altura, mas houve um dia em que a coisa correu mal, partiu-se um galho, caiu e fez um galo na cabeça, fartou-se de chorar. Dizem que uma bruxa tinha feito um feitiço àquela família.
Este feitiço virou-se, não contra a feiticeira, mas contra a mensageira. “Meninas traquinas não poderem voltar a subir às árvores”? “Não gosto disso!” confessou Zezinha. Para Rui, era “demasiado definitivo”. Estava instalado o debate – “não vejo por que deva ser mudado”, “e deixar uma abertura para se imaginar?”, “a forma de trabalhar da Elsa e da Sofia é de dar liberdade às pessoas”. A liberdade estava no ar. Elsa foi sentido as várias sensibilidades e acabou por concluir o conto de outra maneira:
Todas as meninas que eram traquinas, galos na cabeça ganhavam, dizem que até hoje nunca mais, nenhuma menina caiu de uma árvore.
Bendito e louvado está o conto acabado.
Tecer ao som das dores da vida
Sentada no chão, Sofia Freire de Andrade distribui materiais, mostra como se faz, entrelaça fotografias, dá conselhos – o tear enche-se de gente. Três turistas orientais circundam rapidamente a peça, comentando o trabalho em curso. Um casal de franceses pára, de costas para os Jogos de Crianças, como se aquele tear fosse realmente a obra de arte mais importante da sala.
Tudo flui. Júlio, a dois passos da tapeçaria, não se intromete nos trabalhos. Gosta de ajudar, mas também gosta de ver. Tem um problema de costas e muitas artroses que o impedem de tecer. Mas da boca sai-lhe, quando solicitado, um canto que haverá de ser integrado no espetáculo.
“Isto não é um espetáculo”, esclarece Elsa. “É um serão de contos à volta do tear, uma representação das noites passadas à antiga…” Fica o esclarecimento. A melodia remete para as suas raízes ciganas. A letra, como haveria depois de explicar, é toda dedicada a Filomena, por quem se apaixonou já depois de se ter separado da mulher que lhe deu cinco filhos. Filomena morreu num desastre rodoviário. Júlio esteve mais de um ano internado, a recompor-se. Hoje, aos 69 anos, tem 15 netos e sete bisnetos, um problema com a bebida e uma imensidão a separá-lo da família.
Olha para a tapeçaria, onde está representado no canto inferior esquerdo. “Aí tinha corpo. Trabalhava na construção civil.” Agora anda apoiado em duas canadianas e canta, num lamento que mal se percebe, as grandes dores de uma vida.
Entre Vizinhos
É um projeto que promove o envelhecimento ativo através do contacto com a arte e do envolvimento dos participantes em processos artísticos colaborativos. O Museu Calouste Gulbenkian dinamiza o projeto, iniciado em 2017, junto de instituições seniores da freguesia das Avenidas Novas. No processo criativo de Histórias Tecidas Entre Vizinhos, colaboraram 32 participantes, dos quais 19 integram a apresentação final.
Instituições parceiras de 2023
ADAS-BR – Associação de Desenvolvimento Social – Bairro do Rego,
ANADIC – Associação Nacional de Apoio ao Desenvolvimento, Investigação e Comunidade
AASSP – Associação de Auxílio Social São Sebastião da Pedreira
Centro de Dia Rainha D. Maria I – Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
UNANTI – Universidade das Nova
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