Para mim, o «coreografismo» é poesia

Em tom descontraído, o bailarino e coreógrafo Smaïl Kanouté conta-nos a história do projeto que tem como figura central o samurai negro Yasuke Kurosan, apresentado no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian, em estreia nacional, no final de setembro.
15 nov 2022 12 min

Tirou o curso de design gráfico na conceituada École des BeauxArts de Paris, mas é quando entra no mundo da dança que Smaïl Kanouté salta para a ribalta. Curioso d’aquém e d’além mares, os olhos de Smaïl ganham um brilho quase infantil quando fala das suas explorações, das suas descobertas. De resto, é com um entusiasmo maduro que fala do seu percurso, de como chegou e vive hoje a dança, do seu ouvido para a música, do que foi buscar à religião, da sede que tem de mergulhar nas histórias e, sobretudo, nas suas origens, que vivem a milhares de quilómetros de distância. É com maturidade que fala da criação, do colonialismo, da miscigenação. Com tanto adjetivo, quem é, afinal, Smaïl Kanouté? Segundo o próprio, é um «criador de novos imaginários».

 

«Yasuke Kurosan», Grande Auditório, setembro de 2022.

 

Como foi a construção deste projeto, Yasuke Kurosan? Como surgiu, o que quis mostrar?

Em 2006, vi um manga afro-samurai na televisão e fui pesquisar à internet. Ao escrever «afro-samurai», deparei-me com a história do samurai africano, Yasuke Kurosan. Dez anos depois, houve o ano cultural do Japão em França. Fui ver muitas exposições, muitos eventos sobre o Japão, e quis fazer algo sobre o Japão – porque adoro a cultura japonesa, adoro o mundo da manga.
Comecei a pensar como fazer um projeto em torno do Japão, a misturar padrões africanos e padrões japoneses…

O que fazia na altura? Design ou dança?

Depois do ano do Japão, ambos, na verdade. Saí da [École Nationale Supérieure des] Arts Deco de Paris em 2012 com um curso design gráfico e, no último ano da licenciatura, comecei a fazer dança profissional. Em 2016, criei a minha companhia de dança – a Vivons. Tinha de misturar a dança e o grafismo.

E fazer algo com África e Ásia…

Comecei a fazer muitos cartazes com esses padrões e como já estava a fazer vídeos que misturam dança e grafismo, pensei fazer um vídeo com a história desse samurai africano. Estava com muita vontade de ir ao Japão, por isso durante um ano preparei-me, poupei, trabalhei, poupei. Convidei um amigo fotógrafo, Abdou Diouri (que é de origem argelina, mas adora o Japão, já lá tinha ido várias vezes), para vir comigo. Escrevi a história em Paris, começámos a filmar em estúdio, contactei artistas japoneses e quando lá cheguei fizemos uma digressão – fomos a Tóquio, Kamakura e Koné. Filmámos em oito dias.

E o que se vê em Yasuke Kurosan é o encontro de culturas…

Sim, interessava-me conhecer artistas afro-japoneses. Porque, para mim, incarnam o que resta do encontro entre o guerreiro africano que se tornou um samurai. No filme, vemo-los, e quis perceber como são, como se sentem, se conhecem as suas origens, como se posicionam ao nível da dança e da arte. São os chamados blasians.

Blasians?

Blasians, contração entre black [negro] e asian [asiático]. São chamados assim no Japão, mas também na América. O Pharrell Williams, por exemplo, é um blasian.
Fazer o filme, em que me cruzo com ninjas, samurais, bailarinos, e trabalhar com estes mestiços afro-japoneses, foi um passo para criar o espetáculo. Quis trabalhar com afro-asiáticos e fui em busca disso.

 

Ensaio geral da peça «Yasuke Kurosan», Grande Auditório, setembro de 2022. Foto: Pedro Pina
Ensaio geral da peça «Yasuke Kurosan», Grande Auditório, setembro de 2022. Foto: Pedro Pina

Foi uma busca pelas suas origens ou da história desse samurai negro?

Ambos, na verdade. Fiquei fascinado pelo facto de um africano se ter tornado um samurai.

A história é magnífica.

O Japão esteve fechado durante séculos e o facto de um africano se ter tornado samurai significa que o senhor da guerra Oda Nobunaga viu semelhanças culturais entre os dois.
Eu sempre disse que há pontes culturais entre todos os povos do mundo – na base, viemos do mesmo sítio; depois é que seguimos os nossos próprios caminhos…
Esta história fascinou-me. Este guerreiro africano tornou-se outra pessoa noutra cultura e essa é também a minha história. Nasci em França, mas os meus pais são do Mali, por isso estou num país que não é o meu país de origem. Como fui capaz de construir a minha identidade entre estas duas culturas? O samurai é isso – é um escravo; como fez para viver entre a sua cultura, de Moçambique, que foi obrigado a deixar, e a sua vida no Japão, que não é a sua cultura?

E aquilo que criou, em que se tornou.

Exatamente. Vejo-me dentro dessa história, porque sou filho de imigrantes. Como me pude tornar no que sou, num artista, coreógrafo…

Sente-se mais francês, mais maliano, ou um ser global?

Sinto-me global. Mas depende da situação – às vezes sinto-me mais francês, outras mais maliano, depende…sinto-me um pouco brasileiro também, porque adoro o Brasil. Na verdade, para onde quer que vá, encontro sempre pontos de ligação.

É isso que quer mostrar com os bailarinos mestiços?

Quis trabalhar com bailarinos afro-asiáticos porque raramente falamos desta miscigenação. Há muito pouco bailarinos e bailarinas afro-asiáticos.

Encontrou seis…

Encontrei três realmente afro-asiáticos; os outros três são afro-europeus.

 

Ensaio da peça «Yasuke Kurosan», setembro de 2022.

Em termos de dança, do movimento, os afro-asiáticos são muito diferentes dos afro-europeus?

Sim, sim. Quando a Joyce, o Dedson e a Felicia dançam hip-hop, por exemplo, dançam hip-hop com uma qualidade de arte marcial. É o seu lado asiático.

Isso aprende-se?

Pode ser aprendido. A Joyce é chinesa e gabonesa. Nasceu na China, por isso aprendeu as danças tradicionais, artes marciais chinesas. Dedson é do Laos e da Serra Leoa, nascido em França. Mas quando dança, vemos as duas culturas. E a Felicia, que é chinesa e togolesa, e aprendeu Tai Chi… na dança, veem-se as duas culturas. E com os afro-europeus é igual. O francês e camaronês é diferente do francês e maliano, ou do que é guianês cuja avó tem origens tailandesas.

E o que queria mostrar ao certo com este cruzamento no palco?

Que cada mestiçagem tem a sua história, a sua forma, a sua energia. E que cada mistura é única. Era o que queria mostrar.

 

«Yasuke Kurosan», Grande Auditório, setembro de 2022. Foto: Pedro Pina
«Yasuke Kurosan», Grande Auditório, setembro de 2022. Foto: Pedro Pina

Temos de falar da música.

Bem, há dois momentos… o Paul Lajus criou a música para o filme e, depois, o Julien Villa criou a música para o espetáculo. Conheci-o [ao Julien Villa] noutro documentário, L’appel à la danse, sobre dança senegalesa. Éramos todos bailarinos e, ao ver o filme, começámos a dançar. Quando surgiu este projeto convidei-o, pensando que ia recusar. Mas ele disse-me «é uma honra trabalhar contigo. Adoro o que fazes!»
Trabalhei sozinho durante duas semanas, em estúdio, a pesquisar pontes entre África e o Japão, elementos da música japonesa – o biwa (instrumento de cordas), o koto (grande tambor), a corá, o djembê. Pedi-lhe para me criar um ambiente em camadas, em que se partisse de África para o Japão e se regressasse, uma espécie de pingue-pongue. É o que se vê na coreografia. Nunca estamos só num lado. Estamos entre África e a Ásia – como as placas tectónicas, que se estão sempre a mover, suavemente.
Falámos muito e, pouco a pouco, as coisas foram sendo criadas. Em paralelo, ia trabalhando com os bailarinos. Foi uma verdadeira colaboração.

Um processo criativo paralelo…

Sim. Nunca faço ideia do que quero fazer [à partida]. Vou tendo intuições… E como tenho bom ouvido, posso guiar – mais percussão aqui, e assim. Pedi ao Julien para tentar criar uma espécie de baile funk orquestral, como o baile funk brasileiro, mas sinfónico. Ele achou um grande desafio. No dia em que ele criou isto… Uau!

Brasil, Moçambique, Japão… Isso tem algo das viagens dos portugueses nos séculos XV e XVI. Interessa-se por estas viagem?

Ao nível da dança, sim. Viajar significa encontros com pessoas, com histórias, com culturas e interessa-me contar as viagens, fazer as pessoas viajarem. Se não viajamos, não conseguimos chegar ao fundo das coisas. Se eu não tivesse ido ao Japão, não teria podido fazer esta peça como ela é. No Japão, pude sentir a energia do país, a cultura, o povo. O corpo guarda essa memória. E, quando crio, convoco esta memória e transmito-a aos outros.
Foi no Brasil que decidi que me ia tornar coreógrafo.

Foi?

Sim. Eu gostava de dançar, mas foi no Brasil que decidi que, além do grafismo, também queria dançar. Então, ao regressar a Paris, fiz uma audição com a [coreógrafa] Raphaëlle Delaunay.

Mas estudou dança?

Não. Sou um autodidata. Aprendi a dançar na rua, em festas…

E nas viagens.

Isso. Nas festas evoluo muito e como cada país tem as suas próprias festas, aprendi muitas.

 

«Yasuke Kurosan», Grande Auditório, setembro de 2022. Foto: Pedro Pina
«Yasuke Kurosan», Grande Auditório, setembro de 2022. Foto: Pedro Pina

No seu trabalho, fala muito de afro-futurismo. Há também o movimento de pós-memória. Sente-se parte de quê?

Sinto-me como um explorador, um empreendedor. Gosto de criar coisas. E como sou curioso, também estou interessado em história, na minha história, porque não a conheço.

Não a conhece?

Tendo nascido em França, aprendi a cultura do Mali de forma diferente, através da minha família – mas aprende-se melhor no local. Então fiz alguma pesquisa. E regressei ao Mali com os meus pais. Levei uma câmara e segui a minha mãe numa «ronda» pela aldeia. Interessei-me pela história de cada família por isso voltei, durante um mês, para entrevistar famílias. Um dia, fui ver um velho que, diziam, tinha todas as árvores genealógicas na cabeça. Falou-me de todas as árvores genealógicas desde 1850 – é a cultura oral, que é também a minha abordagem às coisas. Mas as coisas perdem-se. Aprendi muito sobre a minha família, o meu lugar, a minha história. E um ano depois de ter feito aquilo, este velho morreu.

Não havia mais ninguém com esse conhecimento?

Ele tinha partilhado o seu conhecimento, mas passando partes a várias pessoas; ninguém tinha a memória completa. Foi muito interessante voltar ao passado e conhecer as pessoas que têm uma história.

Está a falar do passado e a pergunta inicial era sobre o futurismo…

Sim. É importante ir ao passado, trazê-lo para o presente e criar um futuro.
Ir ao passado permite-me trabalhar no presente e dizer quem é que gostaria de ser no futuro. Na criação de espetáculos é a mesma coisa. Interesso-me pelas histórias, crio o vídeo ou o espetáculo, que abrem novos imaginários, encontros entre culturas.
Se tivesse de falar de movimentos, diria que sou um criador de novos imaginários, porque os novos imaginários permitem reconectar as pessoas, cujos laços se perderam na história, com as guerras…

Não apenas devido ao colonialismo.

Sim, acho que desde o início, mas é verdade que o colonialismo destruiu muito. Interesso-me muito pelo pós-colonialismo e as pesquisas sobre pós-colonialismo servem também para estabelecer verdades ou para questionar. Pôr o assunto na mesa e falarmos, juntos.

Pacificar.

Sim, criar paz. E mostrar: «achas que que és muito diferente dele? Na verdade, não, são próximos, em certos lugares.» É o que quero mostrar: que através das histórias, descobrimos lugares onde estamos muito próximos, sem o sabemos.

Mudando de assunto, e para terminar: a luz entra neste espetáculo como uma bailarina. É o seu lado de designer gráfico a entrar na coreografia? Como é que tudo se liga?

Através da manga ou da minha cultura africana, fui introduzido à cultura animista – cada planta, cada elemento, cada objeto, tem uma alma. Aqui, assumi o conceito dos habitantes de Dogo, no Mali, segundo os quais os mortos e os vivos têm uma estrela no céu. As estrelas representam os nossos antepassados, que também têm coisas a dizer.
Costumo dizer que nunca danço sozinho. Danço com o invisível, mas no invisível, danço com quem? Com os meus antepassados, com a luz. E, nesta dança, comunicamos com esses antepassados.
Quando crio uma coreografia, crio imagens, um quadro, de forma gráfica. A luz é a cenografia. Vai desenhar algo com linhas, curvas, ritmos, emoção, energia. É assim que crio a coreografia. Depois penso como montar tudo. Aqui, pensei: «como dançar com as estrelas?» No espetáculo, dançamos com as estrelas. Viro o chão ao contrário para dançar com as estrelas – pegamos nelas para continuarmos a viagem. É muito coreográfico [conjunção de coreografia e grafismo] e, para mim, o «coreografismo» é isso: poesia.

 

Ensaio geral da peça «Yasuke Kurosan», Grande Auditório, setembro de 2022. Foto: Pedro Pina
Ensaio geral da peça «Yasuke Kurosan», Grande Auditório, setembro de 2022. Foto: Pedro Pina

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