O mundo é a nossa casa

Assinalamos os 50 anos da publicação do livro “O mundo é a nossa casa”, um dos primeiros textos em Portugal destinados a um público infantil a conter uma mensagem ecológica.
Ana Barata 17 out 2023 9 min
Obras da Biblioteca

Em março de 1973 – entre os dias 10 e 22 – realizou-se nas instalações da Feira das Indústrias de Lisboa (FIL) a 2.ª Exposição do Design Português, que se repetiu logo a seguir no Porto, no Palácio da Bolsa.

Capa do catálogo da “2.ª Exposição de Design Português”
Rosto do catálogo da “2.ª Exposição de Design Português”

Para além dos expositores com peças cuja produção refletia uma preocupação com a prática do design, havia no percurso desta segunda exposição uma nova secção, onde o público era confrontado com um tema que, à época, era ainda pouco discutido entre nós.

A secção chamava-se Landscape-Design (Design-Paisagem), era da responsabilidade de Júlio Moreira – jovem arquiteto paisagista e escritor – e, de acordo com o artigo Cenário de uma contestação, publicado no jornal Expresso (24 de março), foi a secção que mais afetou “o público em geral”.

O tema era introduzido numa antessala, onde os visitantes se confrontavam com fotografias de grandes dimensões das terríveis cheias que assolaram Lisboa e alguns concelhos vizinhos, em novembro de 1967. Este acontecimento, que causou dezenas de mortes, centenas de desalojados e prejuízos materiais avultados, encheu as primeiras páginas dos jornais da época antes de o regime o ter cancelado, e mobilizou uma vaga de solidariedade com as populações afetadas.

A sua presença na exposição pretendia consciencializar o público para as consequências da má intervenção do homem no meio ambiente. Depois, o percurso seguia, sem derivações, com fotografias e desenhos esquemáticos – de fácil entendimento para adultos e crianças –, acompanhados pelos textos.

Alguma da imprensa da época não deixou de noticiar a exposição, publicando artigos onde, curiosamente o destaque era dado à secção do “Design-Paisagem”. No jornal Expresso, no artigo já citado, lia-se que, “Encaminhados por um corredor que se desdobra em sucessivos ângulos”, os visitantes eram defrontados com uma “sequência de cartazes e fotografias alusivos à ideia que os organizadores quiseram pôr de pé: a indispensabilidade do Landscape-Design como intervenção racional e estética na paisagem e a humanização que daí resultará para a vida de uma comunidade”.

Por sua vez, num dos artigos que o Diário de Lisboa dedicou à 2.ª Exposição de Design Português, na sua edição de 21 de março, era assim que se comentava a secção:

“Em vez de belos exemplos de «design» de paisagem, o visitante encontra desde o início uma sequência de mensagens, por vezes agressiva, que o comprometem como vítima (e responsável) do processo de degradação do meio ambiente.

Para não deixar dúvidas (…) a seguir a uma breve reportagem das inundações de 1967, o visitante encontra-se diante de um espelho, tendo como fundo a imagem de um prédio derrubado…

A análise prossegue por uma via histórica e sociológica do significado do meio em que vivemos e da vida que nele somos obrigados a viver.”

Este artigo abordava ainda outros aspetos da exposição, como o seu catálogo e a realização de uma série de conversas (designadas por “colóquios”) sobre temas de discussão à volta da prática do design. 

No jornal República, realçava-se também a secção do Landscape-Design, citando Júlio Moreira, que considerava a secção um depoimento, “concebido para explorar a essência do conceito de design como resposta integrada para os problemas de bem-estar e sobrevivência dos grupos humanos”.

Tal como a sua antecessora, esta segunda (e última) exposição do design português foi acompanhada por um extenso e ilustrado catálogo. Da secção Landscape-Design, o catálogo reproduzia os desenhos assim como os textos que os acompanhavam, e que estiveram na génese do livro O mundo é a nossa casa. Segundo o testemunho de Júlio Moreira, como se previa que as crianças pudessem acompanhar os pais na visita à exposição, os textos que escreveu eram curtos e simples, fazendo de forma clara a ligação com os desenhos de Cristina Reis. 

Esquisso A7 de Cristina Reis, [1975]
Esquisso A7 de Cristina Reis, [1975]
Esquisso A7 de Cristina Reis, [1975]
Esquisso A6 de Cristina Reis, [1975]

Talvez porque o conteúdo exposto tenha tido, de facto, algum impacto junto do público que visitou a exposição – no final do percurso, um dos visitantes, desafiado a deixar suas impressões em grandes folhas de papel branco num cavalete onde se lia “Passemos à acção! Pode escrever aqui”, escreveu: “Porquê não pôr uma capa nisto tudo e criar um livro?”  – e porque nele havia uma evidente componente didática, a Comissão Nacional do Ambiente pediu a Júlio Moreira que o transformasse em livro para ser distribuído gratuitamente na escolas.

Comentários à exposição
Comentários à exposição

Assinado por Júlio Moreira (1930), António Sena da Silva (1926-2001), Cristina Reis (1945) e Margarida d’Orey (1947), O mundo é a nossa casa ficou pronto nesse mesmo ano de 1973.

Considerado subversivo, os exemplares foram apreendidos pouco depois e queimados, por ordem do governo de Marcelo Caetano.

O motivo para este ato de censura tão violento não terá residido na perspetiva ecológica do texto, até porque Portugal foi um dos países participantes na Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, realizada em junho de 1972, em Estocolmo, com o tema Uma só Terra.

Para os censores do regime, o carácter subversivo do livro residia na forma como é contada a história do “menino que gostava muito de todas as coisas”, e nas razões que levaram a que o mundo se fosse “desarrumando” e deixasse de ser a nossa casa, enunciadas logo na capa, numa espécie de manifesto poético.

E o mundo estava “desarrumado porque havia homens que tinham mais do que precisavam” e outros que não tinham o indispensável, porque alguns aprendiam “cada vez mais” e a outros (a maioria) nunca foi dada a oportunidade de aprender, porque havia “os que não se importam de destruir tudo para servir os seus interesses… e os que são sempre vítimas dos interesses dos outros”.

Na narrativa era ainda explicada a relação da espécie humana com o meio ambiente, um processo evolutivo em 4 fases, duas passadas – a “fase espontânea” e a “fase humanística” – uma presente, a “fase tecnológica” – e uma futura – a “fase festiva“. A descrição da “fase tecnológica” tinha uma carga ideológica marcada, veiculando uma mensagem em tudo oposta aos princípios do regime repressivo que governou Portugal até 25 de abril de 1974, e que este não perdoou.

Para alcançar a última fase, a “fase festiva”, os autores previam que não seria fácil, “porque até há quem faça tudo”, diziam, “para evitar que venha a acontecer, com medo de perder os seus privilégios”, e não sabiam como seria, mas afirmavam ser “um projeto que muitos homens tentam pôr em prática com o risco das próprias vidas”. Por fim, deixava-se às crianças – as gerações da “fase festiva” – alguns conselhos para conseguirem que o mundo fosse de novo “a nossa casa”:

“Estar em equilíbrio com o mundo será saber usar as coisas sem as destruir, construir uma sociedade em que não haja homens com fome, nem conflitos que acabem em guerras ou outras formas de violência.

E só então será possível viver no mundo como em nossa casa e viver a nossa vida como uma Festa”.

Depois da edição de 1973, o livro O mundo é a nossa casa foi publicado em maio de 1975, numa edição idêntica à primeira, novamente da responsabilidade da Comissão Nacional do Ambiente (CNA), tendo sido distribuído também pelas escolas, onde foi largamente apreciada: “A reação das crianças e dos pais foi surpreendente, tendo chegado à CNA milhares de cartas de crianças, escritas em casa ou nas escolas”.

A boa fortuna desta segunda edição, segundo as palavras de Júlio Moreira, levou os autores – com exceção de António Sena da Silva, entretanto falecido – a “assumirem o desafio de, mantendo o espírito da edição original, adaptar parte dos textos e alguns desenhos de forma que possam ser lidos pelas crianças de hoje”.

De facto, na edição de 2009 a carga ideológica que caracterizava os textos das duas primeiras edições, perfeitamente compreensível no contexto político dos anos de 1970 em Portugal, surge muito menos evidente.

Cinquenta anos passaram desde a primeira edição deste pequeno livro. E, no entanto, a mensagem que O mundo é a nossa Casa encerra é hoje muito mais urgente do que o era em 1973, porque desde essa década que a “desarrumação” da nossa casa, que é o mundo, não parou de crescer e a desejada “fase festiva” está agora cada vez mais difícil de alcançar.

Esquisso A6 de Cristina Reis, [1975]

O livro O mundo é a nossa casa, assim como outro material relacionado com a secção Landscape-Design e a 2.ª Exposição do Design Português – recortes de imprensa, esboços dos desenhos, rascunhos dos textos – integra a Coleção Júlio Moreira, uma das coleções especiais da Biblioteca de Arte, doada pelo arquiteto-paisagista à Fundação Calouste Gulbenkian em 2011.

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Uma seleção de livros e revistas, fotografias, catálogos de exposições e outros documentos cujos temas se relacionam com a história da arte, as artes visuais modernas e contemporâneas, a arquitetura, a fotografia e o design portugueses.

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