Livros censurados e proibidos pelo Estado Novo

Entre 1933 e 1974, o Estado Novo censurou e proibiu uma longa lista de livros, por os considerar capazes de “perversão da opinião pública”. Para celebrar os 50 anos do 25 de Abril de 1974, a Biblioteca de Arte recorda esse período sombrio da história recente do país, mostrando alguns desses livros proibidos que integram uma das suas coleções especiais.
19 abr 2024 7 min
Obras da Biblioteca

A censura sobre as atividades profissionais relacionadas com a produção intelectual e cultural do país consolidou-se a partir de 1933, através do Decreto-lei n.º 22.469 de 11 de abril desse ano, data da entrada em vigor da Constituição Política da República Portuguesa, documento tutelar dos princípios políticos e ideológicos do Estado Novo.

Se no seu Artigo 1.º era garantida “a expressão do pensamento por meio de qualquer publicação gráfica, nos termos da lei de imprensa e nos dêste decreto”, logo no Artigo 2.º se estipulava que continuavam “sujeitas a censura prévia as publicações periódicas definidas na lei de imprensa, e bem assim as fôlhas volantes, folhetos, cartazes e outras publicações, sempre que em qualquer delas se versem assuntos de carácter político ou social.”

“Art. 3.º A censura terá sòmente por fim impedir a perversão da opinião pública na sua função de fôrça social e deverá ser exercida por forma a defendê-la de todos os factores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a moral, a boa administração e o bem comum, e a evitar que sejam atacados os princípios fundamentais da organização da sociedade.”

— Decreto-lei n.º 22.469 (Diário do Governo n.º 83/1933, Série I de 1933-04-11)

A partir desse ano, e até 25 de abril de 1974, muitos foram os autores que viram as suas obras censuradas, proibidas e apreendidas pela ação dos agentes das comissões de censura que existiam por todo o território continental e ultramarino, subordinadas à Direção Geral dos Serviços de Censura, criada em 1933, e à sua sucessora, a Direção dos Serviços de Censura (1935), coadjuvadas pela PIDE, a polícia política do regime.

Nenhuma área do conhecimento escapava ao crivo do lápis azul e ao carimbo vermelho dos censores: das artes plásticas às ciências naturais, da ciência política à economia, da educação à geografia, assim como a filosofia, a história, a literatura, a música, a sociologia e a religião. E terão sido entre 7 a 10 mil livros de autores portugueses e estrangeiros, em edição original ou tradução, que passaram pelos seus olhos e as suas mãos, referenciados nos cerca de 10.000 relatórios de leitura produzidos pelas diversas comissões entre 1934 e 1974.

A classificação de conteúdos subversivos, indesejáveis e capazes de corromper a opinião pública contra “os princípios fundamentais” do regime recaía inteiramente nas capacidades intelectuais e de discernimento de cada censor e, por vezes, simples palavras, aparentemente inócuas, como vermelho, motivavam-lhes associações que atestavam a perigosidade da obra.

Por outro lado, o espectro de temas passíveis de caírem em tais classificações ultrapassava em muito a política, embora os censores tivessem uma muito particular atenção a matérias de possível inspiração comunista e anarquista. Num país submetido à trilogia “Deus, Pátria e Família”, outros temas tidos como atentatórios da moral e dos bons costumes, eróticos ou pornográficos, e contra a religião católica, não tinham igualmente muitas hipóteses de serem aprovados.

Enquanto no caso da imprensa, das peças de teatro, dos filmes e, mais tarde, da televisão, os conteúdos eram previamente examinados, no das obras literárias a ação da censura acontecia geralmente após a sua publicação, com a apreensão da edição e proibição de novas edições.

Prevendo possíveis falhas, em 1943, o Ministério do Interior emitiu um decreto-lei que passava o ónus da responsabilidade para os editores e distribuidores, assim como previa a possibilidade da existência de “delegados do Gôverno” nas suas instalações.

“(…) tendo em vista os inconvenientes que para o próprio comércio de livros resultariam da prévia leitura oficial — necessariàmente demorada — de todas as obras, haverá que continuar e exigir dos que intervêm na sua impressão, distribuição e venda a sua parte da responsabilidade.”

“Art. 2.º Sempre que se publique, edite, reedite, venda ou distribua qualquer escrito lesivo dos princípios fundamentais da organização da sociedade ou prejudicial à defesa dos fins superiores do Estado poderá o Ministro do Interior, (…) ordenar que junto das emprêsas responsáveis, e à custa destas, funcionem delegados do Gôverno (…)”

— Decreto-lei n.º 33.015 (Diário do Governo n.º 185/1943, Série I de 1943-08-30)

Este dispositivo legal não impediu, contudo, que obras proibidas após a primeira edição conhecessem segundas, terceiras e mais edições. Livros houve também que só foram objeto da atenção dos censores após várias edições, tendo acabado por não serem proibidos para não lhes dar destaque. Foi o caso de Esteiros de Soeiro Pereira Gomes (1909-1949), com capa e desenhos de Álvaro Cunhal: a primeira edição foi autorizada em 1941, (reeditado 1942, em 1962 e 1971), mas foi alvo de opinião contrária em 1966.

Entre a longa lista de autores cujas obras foram censuradas e proibidas pelo Estado Novo, encontram-se alguns dos nomes maiores da literatura em língua portuguesa do século XX: Alexandre O’Neill, Alves Redol, Aquilino Ribeiro, Artur Portela Filho, Castro Soromenho, Jorge Amado, José Cardoso Pires, Luandino Vieira, Luís Bernardo Honwana, Luís de Sttau Monteiro, Maria Isabel Barreno, Maria Lamas, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa, Mário Cesariny, Miguel Torga, Natália Correia, Orlando da Costa, Vergílio Ferreira.

Uma pesquisa neste universo revela que uma parte significativa destas edições teve a colaboração de artistas plásticos a quem as editoras — Ulisseia, Inquérito, Europa-América, Estúdios Cor, Minotauro, Atlântida, Afrodite, Arcádia, Portugália, Gleba — entregaram a responsabilidade gráfica das capas e as ilustrações: António Charrua, Bertina Lopes, Cruzeiro Seixas, Fernando Lemos, João Abel Manta, João Vieira, Júlio Pomar, Manuel Ribeiro de Pavia, Nikias Skapinakis, Sebastião Rodrigues, Vespeira, Victor Palla, por exemplo.

Escritores e artistas eram frequentemente companheiros de tertúlias várias, juntos em cumplicidades contra o regime opressor que cerceava a sua criatividade.

No caso dos artistas, vários foram os que se expatriaram, porque em Portugal não lhes era possível viverem da sua arte, porque aqui imperava a indiferença e, mais intolerável ainda, a incompreensão do público perante as suas obras.  Para muitos, a possibilidade de procurar lá fora a liberdade que o país só recuperou em 25 de Abril de 1974 conseguiram-na graças às bolsas que a Fundação Calouste Gulbenkian começou a atribuir aos jovens artistas logo após a sua criação em 1956.

Os exemplares apresentados pertencem à Coleção Bordalo Botto, constituída por livros, jornais e revistas e alguns manuscritos de autores portugueses do século XX. Reunida ao longo da sua vida pelo bibliófilo portuense Álvaro Bordalo BoTto (1909-1986), esta coleção é fundamental para o estudo do design gráfico e a ilustração literária em Portugal, e foi doada à Fundação Calouste Gulbenkian em 1986 pelo próprio Álvaro Bordalo.

Série

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Uma seleção de livros e revistas, fotografias, catálogos de exposições e outros documentos cujos temas se relacionam com a história da arte, as artes visuais modernas e contemporâneas, a arquitetura, a fotografia e o design portugueses.

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