Jorge Chaminé

Bolseiro Gulbenkian 1978 – Histórias de Impacto

A História de Impacto de um dos mais ilustres músicos portugueses, que se destaca pelos inúmeros feitos que alcançou na área da música e pela sua distinção no mundo da lírica internacional.
17 jan 2024 16 min
Histórias de Bolseiros

Nasci no Porto, terra de artes e de trabalho, de coragem e de vanguardas. Nasci numa família de opositores aos regimes ditatoriais ibéricos, já que o lado materno era originário de Espanha, que, ao longo de sucessivas gerações, tiveram a boa ideia de se casar entre diversas nacionalidades. Europeu convicto tanto por ADN como pela crença de que os Estados Unidos da Europa são solução num mundo cada vez mais dividido, tentado por nacionalismos e populismos e com novos impérios ávidos de poder. Desde que tenho consciência, não me recordo de um momento em que a Música não estivesse presente na minha vida. Companheira fiel que me tem acompanhado e apoiado até hoje!

As circunstâncias familiares fizeram com que, apesar de meus Pais não serem músicos, o facto de ter uma Tia pianista profissional, professora do Conservatório de Música do Porto e da Escola Superior de Música da mesma cidade, e um Avô cantor de Fado de Coimbra, nas suas horas de lazer, e que, conhecido como o “Rouxinol do Norte”, chegou a gravar mais de uma dezena de discos para a Pathé Marconi em Paris, levaram a que a Música tenha estado sempre presente.

Recordo que um dos grandes prazeres da minha infância era pôr-me debaixo do piano da Tia, minha iniciadora musical, e deixar-me inundar pelas ressonâncias do 2º Concerto para piano de Brahms, que trabalhava nessa altura para o tocar com a Orquestra Sinfónica do Porto. Lembro-me também dos concertos de domingo de manhã desta mesma orquestra onde, levado pelos Avós, tranformando-me para estes em autêntico pesadelo já que, de repente, encontrava-me a dirigir na plateia e por trás do Maestro, para grande deleite do público…

Foi com a Tia, Maria Teresa Xavier, que com apenas três anos e meio comecei o piano, mas o canto, segundo rezam as lendas familiares, esteve sempre presente. E a direcção de orquestra, também…! Reunia os familiares, “obrigava-os” a tocar um instrumento “virtual”, dirigia-os e asseguro que ouvia a música na minha cabeça. Outra anedota era a de dirigir as Sinfonias de Beethoven com as portas espelhadas do interior do armário do meu quarto, o meu querido Sebastião – tive sempre o hábito de dar nomes aos objectos, como se assim lhes pudesse dar “anima” – e procurava aquele ponto exacto em que os espelhos se alinhavam e multiplicavam a imagem e aí punha-me a dirigir, simplesmente, a Orquestra Filarmónica de Berlim…!

Mas a história, com certeza, mais emblemática e contundente para que a família admitisse que a Música era parte essencial do meu ser foi o facto de que próximo de casa existia um coro de crianças dos 6 aos 12 anos e do qual, esperando as minhas aulas de piano com a Tia, ouvia os ensaios.

Diante da minha insistência obsessiva, a pobre Mãe teve que telefonar ao director da Academia Parnaso, o compositor Fernando Correia de Oliveira, para que me recebesse e explicasse que ainda não tinha idade para poder pertencer ao Coro. Só que ouvi o telefonema e, quando diante do director, ele me perguntou a idade, eu respondi do alto dos meus quatro anos: “zete anos!” (era um pouco pevidoso). A gargalhada foi grande e de forma simpática e divertida o Correia de Oliveira pediu-me para lhe cantar qualquer coisa e, qual o seu espanto, cantei-lhe todo o reportório do seu Coro.

Fui admitido excepcionalmente. Acho que foi a maior vitória de toda a minha vida… Graças a esse evento, fiz aos doze anos o meu “début” operático na obra “O Cábula”, do citado compositor, no Teatro de São João do Porto, o que me leva a poder afirmar que tenho mais de cinquenta anos de carreira. Mais tarde, frequentei as classes de canto e de piano no Conservatório de Música do Porto e a classe de violoncelo de Madalena Sá e Costa e como violoncelista participei também, na minha adolescência, em concertos de Jazz. Free jazz…

Talvez a minha curiosidade tenha sido a qualidade/defeito que mais marcou a minha vida. Curiosidade precoce em relação à dramática vida do lado materno espanhol, e sobretudo com a Bisavó que tive a sorte de ter até aos meus 23 anos, com a qual estabeleci uma relação excepcional, tendo tido uma influência ímpar na pessoa que sou. Exilada pela Guerra Civil Espanhola, chegada a Portugal com falsos documentos e poucos haveres entre os quais uma edição original do D. Quijote de la Mancha e algumas jóias, a Bisavó, tendo perdido o marido e o filho assassinados respectivamente pelos anarquistas e pelos falangistas, foi uma figura essencial na história de Espanha, uma das primeiras jornalistas, feminista, à qual as mulheres espanholas devem o voto em 1931 pois foi ponta de lança desta vitória feminista junto com as suas amigas Clara Campoamor, Concepción Arenal ou a mais idosa Emília Pardo Bazán.

Cresci com uma Espanha mítica e com o Don Quijote, essa Espanha que representada pela Bisavó e pela Avó foi também fonte de maravilhosas histórias que de repente me transportavam aos inícios do século XVIII, pois a Bisavó tinha conhecido a sua bisavó. Mas sobretudo os exemplos dessas duas Senhoras que, de forma exemplar, nos ensinaram o que é a dignidade, essa de tudo perder materialmente mas de dar valor ao que na verdade conta na vida: o ser humano que se é!

A surdez da Bisavó foi causa do meu bilinguismo (espanhol/português) e talvez da razão primeira de ser músico (acompanhada quando criança da vontade de ser médico para surdos). Recordo os momentos mágicos em que, com a mão da Bisavó em cima do meu peito na madeira do violoncelo, sentia o quão feliz ela ficava ao sentir as vibrações como se estas fossem, mesmo para os surdos, comunicação essencial!

Segui os meus estudos secundários acompanhados sempre pelo amor da Música e do Teatro e, dispensado de exames, vejo-me na Faculdade de Direito de Coimbra em 1973, numa rara presença nos anfiteatros e numa forte presença na luta política contra a ditadura, que anos antes me tinha regalado uma curta prisão na Judiciária do Porto e uma longa e constante vigilância por parte da P.I.D.E., tanto no Porto como em Coimbra.

As novas gerações não sabem o que foi crescer num país cinzento e descobrir a paleta de cores do 25 de Abril… Eleito para os órgãos directivos da Associação Académica de Coimbra após a libertação de Portugal do jugo fascista, fundei o Centro de Estudos Musicais e pertenci desde o início das minhas andaças universitárias ao TEUC, CITAC, Orpheon Universitário, Coral de Letras… Tudo o que me pudesse afastar da palavra escrita dos manuais de Direito. E foi assim que escolhi a palavra cantada e falada e que, em Outubro de 1977, resolvi vir para Paris.

Graças a um ritual familiar de dar umas libras de ouro nos meus aniversários, Natais e Páscoas por parte dos padrinhos e Avós, consegui reunir um pequeno espólio que me permitiria comprar uma viagem de camioneta e viver uns meses em Paris. Foi na Residência André de Gouveia, propriedade da Fundação Calouste Gulbenkian na Cidade Internacional Universitária de Paris, que, graças ao bom Dr. Rogado Dias, director na altura da Residência, pude ter um quarto onde ficar e iniciar o meu aperfeiçoamento como cantor. Imenso foi o desafio, mas sem dúvida uma certa inocência fez com que me sentisse forte da convicção que não havia outra hipótese senão esta: a de sair dum Portugal onde o oxigénio faltava, num mundo da Música ainda fechado aos que, como eu, não pertenciam nem a capelinhas, nem a partidos políticos.

Como sabeis, a Fundação Gulbenkian tinha sido, durante a ditadura, um oásis de cultura, de liberdade e de criação e nomedamente no campo musical, onde a acção da Dra. Madalena Perdigão foi essencial. Recordo-me de concertos memoráveis e, por exemplo, da criação de “Cendrées” de Iannis Xenakis. Nessa altura, longe de mim imaginar que poucos anos depois conheceria o casal Xenakis, amigos entranháveis até ao falecimento dos dois e que o Iannis escreveria uma obra para a minha voz. Como os pequenos haveres financeiros tinham diminuido substancialmente, pedi ao serviço de Música da Gulbenkian uma audição em Lisboa em Abril de 1978. Foi-me concedida e, a partir de Outubro do mesmo ano, recebi uma bolsa de estudos.

A vida é feita de “coincidências”, que não são mais que os fios da tapeçaria que tecemos ao largo dos anos. As primeiras semanadas que recebi ao passar a fronteira da idade da razão (segundo consta, aos 7 anos) converteram-se na compra de discos, nomeadamente de Beethoven, pelo qual senti sempre uma admiração e uma cumplicidade quase fraternal. Os primeiros discos foram três sonatas de Beethoven: Patética, Appassionata e “Clair de Lune” por Walter Klien e as 5ª e 7ª Sinfonias pela Orquestra Filarmónica de Berlim e Karajan.

Em Janeiro de 1978, no Teatro dos Campos Elíseos, o Quarteto Amadeus com o Walter Klien interpretavam o Quinteto “A Truta”, de Schubert. Consegui um lugar no “galinheiro” e, no final do concerto, fui felicitar os intérpretes. Tive a audácia de contar ao pianista o facto de que o meu primeiro disco tinha sido o seu. “Tem uma voz de cantor” disse-me o Klien, comovido. “Tento sê-lo…”, retorqui-lhe. “Sabe que há algo no seu timbre que me lembra a voz do Hans Hotter”. “Agradeço, pois tenho uma imensa admiração por ele”, respondi-lhe. “Gostaria de trabalhar com ele?”. “Claro que sim! Isso seria a realização de um sonho meu”. “Sabe que o acompanhei em inúmeros recitais. Olhe, escreva-lhe da minha parte. Sei de cor a morada: 56, Emil-Dittler Strasse – Solln/Munique”.

O meu coração acelerou de forma evidente e mal regressei à Casa de Portugal escrevi ao Hotter, que uma semana depois me convocava para ir passar uma audição. Passei-a e vivi com o casal Hotter, em casa deles, durante um ano. Cada dia tinha de lhe apresentar de cor um novo lied de Schubert, Schumann, Brahms, Wolf, Mahler ou Strauss e foi deveras um período incrivelmente rico na minha aprendizagem do reportório alemão. O elo entre o meu primeiro disco e o Hotter estava traçado. Histórias como esta, tenho-as e muitas! Fios cruzados que, quando se olha para a tapeçaria do avesso, vemos perfeitamente o trabalho do que se pode chamar o Destino.

Rapidamente tive consciência da responsabilidade de ser músico. Quis com a minha voz servir causas humanitárias, não na perspectiva do “charity business”, mas naquela de participar activamente, em colaboração estreita com a Unesco ou com associações, desenvolvendo um magnífico trabalho pelas crianças desfavorecidas. Rapidamente, também, tomei consciência dos perigos das “carreiras” individualistas e em que se servem da Música e não a servem.

Tive o privilégio de cantar nas mais importantes salas de concerto e teatros de ópera do mundo, contracenar com nomes como Mirella Freni, Montserrat Caballé, Plácido Domingo, José Carreras, Teresa Berganza. Com a Teresa, tive a imensa sorte de ser o seu primeiro aluno e ter cantado com ela inúmeras vezes tanto em recital, concerto ou representações de ópera. Recordo um mês na sua casa de Guardamar, onde trabalhámos quotidianamente as três óperas Da Ponte-Mozart (D. João, Bodas de Fígaro e Cosi fan tutte), em que a Teresa me dava as réplicas de todos os personagens. Momentos inesquecíveis e lições do que é ser-se músico, deveras!

Tudo isto era fundamental na minha aprendizagem e, mais tarde, em toda a minha carreira, mas não me satisfazia plenamente. Em 1988, tendo recebido o Prémio Yehudi Menuhin, tive a oportunidade de ser dirigido dezenas de vezes por este imenso Músico e Ser Humano. A amizade que tecemos foi fonte de inspiração para mim e levou-me a considerar, uma vez mais, que a par do músico há o homem e o cidadão e que, quando a alquimia se estabelece, a consciência tranquiliza-se e transforma-se em eixo fundamental da nossa acção.

Fundei com a minha mulher, a pianista Marie-Françoise Bucquet, os Ateliers “Sons Croisés”, onde uma nova forma de pedagogia a duas vozes foi proposta e centenas de músicos de mais de trinta nacionalidades se encontravam todos os meses na belíssima sala de concertos do Centro Cultural Português em Paris, residência que foi do próprio Calouste Gulbenkian. Graças à inestimável ajuda da minha boa amiga Luísa Braz de Oliveira e dos directores Maria de Lourdes Belchior e Francisco Bethencourt, o Centro Calouste Gulbenkian passou a ser um autêntico laboratório musical para novos talentos que hoje, numa grande maioria, fazem óptimas carreiras internacionais.

A minha fidelidade a Portugal, não sempre correspondida, passou também por dar a conhecer a música portuguesa nos meus próprios recitais através mundo e recordo, igualmente, uma Festa da Música em 21 de Junho de 2003, em que dezenas de peças portuguesas foram interpretadas por jovens músicos oriundos de quatro continentes no Centro Gulbenkian de Paris e com a assistência de centenas de pessoas ao largo de mais de 6 horas de música ininterrupta. Concomitantemente, fundei na Holanda “Music in ME” (Música no Médio Oriente), onde montámos vinte e três projectos musicais no Iraque, Síria, Líbano, Jordânia, Israel e Palestina. Não esquecerei nunca as minhas viagens anuais a essa região, o poder ver o quão a Música é elo de Paz e de entendimento, de bálsamo para tantos sofrimentos devidos à loucura dos homens.

Em Itália, fundei o Festival “CIMA” no sul da Toscana, onde o mecenato e a venda de bilhetes eram integralmente transformados em bolsas de aperfeiçoamento artístico para jovens músicos desfavorecidos ou oriundos de países onde a Música dita clássica tinha poucas hipóteses de receber ajudas. Conseguimos, milagrosamente, subsistir durante 14 anos e dar mais de 400 mil euros de bolsas. A consciência de ter optado por uma via “hors sentiers-battus”, assumindo todas as consequências, deu-me uma liberdade de acção que considero um privilégio, num mundo onde a Música e os seus servidores foram, numa grande maioria, infectados pelos objectivos dum mercado de entretenimento, empobrecidos das mil virtualidades da Arte que devemos servir.

Hoje, em fase de concretização, está o Centro Europeu de Música – CEM – fruto de vinte anos de reflexão e de audazes convicções, ou o despertar de uma Bela Adormecida, como diria a secretária geral de Europa Nostra, a minha querida amiga Sneska Quaedvlieg-Mihailovic. Um Centro onde um património abandonado em Bougival, a vinte minutos de Paris, reúne a Casa de Bizet, onde a ópera “Carmen” nasceu e o genial compositor faleceu aos 36 anos de idade, a Villa Viardot pertencente à insigne cantora, compositora, pedagoga, desenhadora, polímata Pauline García Viardot e a Datcha do grande escritor russo Ivan Turgueniev.

Hoje, esta memória patrimonial está salva graças ao apoio do Presidente da República francesa Emmanuel Macron e reunir-se-á num futuro prometedor com os novos edifícios do Centro Europeu de Música desenhados pelos arquitectos de Snøhetta e D&A, com um Auditório Georges Bizet, uma Academia de Música Pauline Viardot, uma Ágora das Tradições e Culturas Musicais “Yehudi Menuhin”, um Laboratório de pesquisa científica “Música e Cérebro”, um Centro terapêutico e desportivo e uma Residência Intergeneracional onde os alunos da academia vivirão com músicos reformados. Este Centro será inscrito num percurso de trinta hectares integrado na Colina dos Impressionistas, transformando-o no primeiro ecoquarteirão de cultura na Europa, onde a Música e as suas mil virtualidades serão o soclo de uma nova forma de viver e, com o apoio da Comissão Europeia, há igualmente o reconhecimento de que a Música é a identidade cultural europeia por excelência.

Acompanhado por um Conselho Científico de vinte reconhecidos científicos, humanistas e clínicos que concordaram com o meu desafio de estabelecer uma transdisciplinaridade, reunindo catorze disciplinas, da Astrofísica à Semântica, da Filosofia às Neurociências, da Musicologia e Etnomusicologia à Física Quântica, da História à Linguística, da Matemática às Ciências cognitivas, acompanhados também por Clínicos no campo da Medicina, que reconhecem os efeitos terapêuticos da Música em doenças como o Ahlzeimer, Parkinson ou em problemas comportamentais como o autismo. A Música neste nosso projecto do CEM será instalada no coração da Polis como elo social, artístico, científico, generacional, turístico e económico, essencial. Reconhecido também estou à Agenda 2030 do desenvolvimento durável das Nações Unidas, de certificar que este projecto cumpre 13 dos 17 objectivos aí configurados. E, como já devem ter percebido, os fios da Memória, Memnosis, mãe de todas as Musas, mais uma vez teceram “sincronicidades”, pois aos 18 anos fundava em Coimbra o Centro de Estudos Musicais – CEM – e hoje, algumas décadas depois, fundo o Centro Europeu de Música – CEM – em Bougival…

Por tudo isto, às bolseiras e aos bolseiros que me lêem, músicos e não músicos, saibam que a imaginação e o pulsar do vosso coração são o único limite. Não há idade, não há corpo, nem geografia que limite o sonho pois só este tem o poder de comandar a Vida. Talvez me qualifiquem de “lírico” (normal!), utópico ou quixotesco mas, como conclusão, cito-vos aquele que ainda hoje é o representante do grande científico, Albert Einstein: “A Imaginação é mais importante que o conhecimento, porque o conhecimento é limitado e a Imaginação infinita” .

Série

Histórias de Bolseiros

Desde 1955, a Fundação Gulbenkian apoiou mais de 30 mil pessoas de todas as áreas do saber, em Portugal e em mais de 100 países. Conheça as suas histórias.

Explorar a série

Definição de Cookies

Definição de Cookies

Este website usa cookies para melhorar a sua experiência de navegação, a segurança e o desempenho do website. Podendo também utilizar cookies para partilha de informação em redes sociais e para apresentar mensagens e anúncios publicitários, à medida dos seus interesses, tanto na nossa página como noutras.