Daniel Marques: “É muito importante levar a ciência às pessoas”

Daniel Marques recebeu a Bolsa Gulbenkian Novos Talentos em Biologia, mas os seus interesses vão desde a investigação científica à gestão de um canal Youtube. Saiba o que motiva este curioso bolseiro.
07 set 2023 9 min
Histórias de Bolseiros

Nascido e criado em Faro, Daniel Marques deixou a cidade-natal para estudar Filosofia em Coimbra. A meio do percurso, decidiu trocar as ciências humanas pelas exatas, guardando sempre um pouco das duas perspetivas. Prestes a começar o mestrado em Investigação Biomédica, em Lisboa, fala-nos do seu perfil transdisciplinar e do gosto em aliar a investigação científica à comunicação.

Terminaste este ano a licenciatura em Biologia, mas a tua escolha inicial de curso foi Filosofia. Como é que se deu esta mudança de interesses?

Sim, aos 18 anos entrei em Filosofia. No entanto, ao fim de algum tempo, comecei a interessar-me muito por neurociências: punha-me a ler, no verão, artigos sobre neuro desenvolvimento, o funcionamento de circuitos neuronais ou da perceção visual, por exemplo. Embora percebesse algumas coisas, senti que noutras ficava para trás e, progressivamente, quis perceber mais. Foi esta curiosidade que me levou ao fim do segundo ano de Filosofia a pensar “bom, se calhar, o meu contributo seria melhor nas ciências”, e achei que poderia levar alguma bagagem de uma área para a outra, nomeadamente a nível da comunicação dos resultados e na compreensão de conceitos.

Como é que essa transição aconteceu? Achas que há uma relação próxima entre a Filosofia e a Biologia?

A Filosofia costuma ser descrita como a mãe de todas as ciências, não é? Só a partir do século XVII ou XVIII, penso eu, é que houve esta cisão em relação às ciências naturais. Mas diria que existe uma relação íntima, sim; aliás, até existe uma disciplina de filosofia na biologia.

O meu interesse foi mais pela via das neurociências, da neurobiologia, pela filosofia da mente numa perspetiva naturalista ou até fisicalista. Ou seja, a ideia de que os processos mentais podem ser explicados à luz do seu substrato físico, e que para perceber fenómenos como a memória, a consciência ou as doenças neuropsiquiátricas temos de recorrer a processos físico-químicos. Não é por pensarmos sobre a mente que vamos descobrir como é que ela funciona, precisamos mesmo de ter estas ferramentas. E, de facto, estamos no século perfeito para estudar o cérebro: temos desde a ressonância magnética às técnicas moleculares, que nos ajudam a perceber a atividade de diferentes genes… Tudo isso fascinou-me.

Um dos temas que estás a explorar com a Bolsa Gulbenkian é “o papel da microglia no neuro desenvolvimento”. Podes explicar-nos em que consiste?

Quando falamos de microglia estamos a falar de células do sistema imunitário, que são residentes no parênquima cerebral, e que normalmente estão associadas a funções de defesa. Mas e quando o organismo não está sob ataque, será que o sistema imunitário não poderá ter outras funções? Há muito que se sabe que sim, mas os efeitos que o sistema imunitário tem no cérebro ainda apresentam alguma área para investigação.  Essa não foi a minha questão diretamente, mas o grupo onde me inseri, no laboratório do Prof. João Peça, estava justamente a estudar como é que a microglia podia moldar circuitos neuronais durante o desenvolvimento pós-natal, por exemplo, numa resposta alérgica. Os circuitos neuronais são basicamente conjuntos de neurónios que ficam agrupados e desempenham uma determinada função. A microglia ajuda nesse processo e uma resposta alérgica pode alterar a sua atividade.

Isto levou-me a ter um interesse crescente pela Imunologia, que é uma área de que eu sei relativamente pouco ainda. Por isso é que vou agora para o Mestrado em Investigação Biomédica no Instituto de Medicina Molecular, em Lisboa.

Então daqui para a frente o teu percurso será nessa área?

Normalmente não assumo esse tipo de compromissos [risos]. Interesso-me muito por esta questão da forma como o sistema imunitário molda outros sistemas biológicos – neste caso, o sistema nervoso, a neuro imunologia – e, portanto, é um caminho possível. Mas também acho que estou numa fase em que vou descobrindo novos interesses dentro das ciências da vida e não quero ter um percurso demasiado fechado. No início da Bolsa da Gulbenkian tinha uma determinada ideia sobre aquilo que queria fazer, que entretanto se expandiu, entre workshops a conhecer outros projetos, a falar com diferentes colegas…

Que importância teve esta bolsa para o teu percurso?

Teve uma importância decisiva do ponto de vista financeiro. Deu-me a possibilidade de fazer o curso de experimentação animal, que vai começar agora ainda em setembro e que é fundamental, porque é o único em Portugal a permitir o acesso à experimentação animal em todos os países europeus. É uma formação bastante cara, portanto sem este apoio da Gulbenkian não conseguiria fazê-la tão cedo na minha carreira. Conheço pessoas em doutoramento que ainda não têm essa formação e, por isso, estão dependentes de investigadores seniores; mas eu quero ser independente, quero ter a possibilidade de executar as experiências e também ter uma melhor compreensão, por exemplo, dos protocolos éticos envolvidos, estando a trabalhar com animais.

Uma outra vantagem da Bolsa foi ter-me permitido fazer o curso de programação de Harvard online, que é um dos melhores cursos para aprender a programar, e tem a vantagem de ensinar a pensar computacionalmente, a resolver problemas. Acho que isso é uma coisa muito positiva, porque hoje em dia já é necessário ter conhecimentos de programação, em particular para análise de dados e Machine Learning.

Como tem sido a experiência de fazer parte da rede de bolseiros Gulbenkian?

Nos últimos seis anos tenho estado sobretudo em Coimbra, mas vou mantendo algum contato com os colegas da área de Biologia. Aliás, tirei muitas dúvidas sobre o mestrado com um colega bolseiro, o Germano, e esse apoio foi bastante positivo. De outra forma, se calhar, não teria o mesmo à vontade para vir para uma cidade tão grande como Lisboa, porque estou habituado a cidades de dimensão muito reduzida (Faro, Olhão, até mesmo Coimbra), onde revemos as mesmas pessoas a fazer diariamente os mesmos percursos e rotinas. Isso não é uma coisa que sinta que está a acontecer aqui em Lisboa: todos os dias, quando vou para o metro, vejo pessoas diferentes, e isso para mim é uma sensação um bocadinho desconfortável. Daí esta necessidade de ter algum suporte entre pares, de pessoas que estão na mesma situação que eu, mas um pouco mais avançadas, que servem como mentores, informalmente.

© Francisco Gomes

Fora do âmbito académico, tens outros interesses ou atividades?

Posso dizer que sim, embora ache que tudo o que faço está relacionado de uma maneira ou de outra. Iniciei recentemente um projeto de comunicação de ciência, que está à parte dos interesses académicos, mas relacionado com eles: é um canal no YouTube chamado That Biologist, em que comunico diferentes conceitos científicos – por exemplo, o último vídeo foi sobre origamis de DNA – e tentar explicá-lo em termos acessíveis, e simultaneamente também ensinar alguma biologia por detrás desse processo. Nem sempre vou ter tempo porque é muito trabalhoso, mas quero manter o upload de um vídeo por mês.

Um outro projeto pessoal é a escrita. Nos meus tempos livres escrevo e leio imenso, e neste momento estou a trabalhar num romance policial.

Atualmente fala-se muito da necessidade de saber comunicar ciência. Isso é um papel que te vês a desempenhar no futuro?

Sim, é uma coisa que gostaria bastante de fazer. Lá está, quero aproveitar para fazer investigação e dar o meu contributo, adoro fazer experiências, mas vejo-me muito a comunicar ciência. Se este canal no YouTube funcionasse mesmo muito bem, o meu sonho seria ter uma equipa em que pudéssemos produzir conteúdo e também fazer alguma investigação. Acho que é muito importante levarmos a ciência às pessoas a quem esta interessa. Tenho um grande interesse pela parte da ciência aplicada, mas a ciência básica também é fundamental para mais tarde virmos a desenvolver potenciais aplicações. Elevar esta consciência pública é muito importante para desmistificar e desconstruir alguns conceitos, e combater a desinformação.

Onde é que te vês daqui a cinco ou 10 anos?

Essa é uma pergunta difícil. Adoraria fazer doutoramento, por uma questão de realização pessoal e também para dar o meu contributo à ciência. Gostaria de fazê-lo no estrangeiro, ainda não sei exatamente onde, nesta área de Investigação Biomédica, mais relacionado com a Neurobiologia ou com a Imunologia ou uma junção das duas. Outra componente que me interessou no último ano da licenciatura foi a área da entrega localizada de fármacos, numa vertente mais biotecnológica… Portanto, tenho algumas ideias. mas acho que o mestrado vai ser decisivo para determinar esse percurso.

Pareces ter ainda muitas portas abertas. Isso é bom!

É. Às vezes acho preocupante não ter exatamente uma certeza, mas, por outro lado, também pode ser algo libertador, porque significa que não tenho de estar preso a uma coisa. A ciência é muito diversa, e um perfil transdisciplinar como o meu, que tem esta componente da filosofia aliada à biologia, permite-me trabalhar com pessoas de diferentes áreas e estabelecer pontos de comunicação. Isso é uma coisa que me vejo definitivamente a fazer: desenvolver projetos ambiciosos, que cruzem diferentes áreas e permitam pôr toda a gente a falar uns com os outros, que é uma coisa que nem sempre acontece nas ciências. Às vezes um laboratório fica muito isolado do outro, ou os cientistas não leem o trabalho uns dos outros.

Por exemplo, na disciplina de Biologia Translacional e Biomedicina, o meu grupo conseguiu pôr vários autores a comunicar para desenvolver um conceito muito arrojado de investigação: uma terapia microrobótica que permitisse a entrega de antioxidantes, para prevenir a neurodegeneração associada ao Alzheimer. Dali surgiu uma ideia que pode até não funcionar, mas que é imensamente engraçado, porque abre portas, não é? No fundo, gostaria muito de ter mais conhecimentos, de me especializar mais, para poder fazer estas pontes de uma maneira mais realística.

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Histórias de Bolseiros

Desde 1955, a Fundação Gulbenkian apoiou mais de 30 mil pessoas de todas as áreas do saber, em Portugal e em mais de 100 países. Conheça as suas histórias.

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