Arte participativa: um “amor de verão” a florescer

Ao longo de dois dias, 14 estruturas artísticas de todo o país estiveram reunidas na Fundação Gulbenkian para falar sobre os desafios e as aprendizagens do programa Atos, desenvolvido pelo Teatro Nacional D. Maria II em parceria com a Fundação.
20 mar 2024 6 min

Um mês, um território desconhecido e uma folha em branco. Foi assim que a maior parte dos projetos do programa Atos começou e se desenvolveu, em 2023, por quatro dezenas de municípios em todo o país. No balanço de um ano intenso de projetos, e a arrancar um novo ano do programa, representantes de 14 das 16 entidades artísticas participantes na iniciativa juntaram-se, nos dias 11 e 12 de março, para partilhar angústias, felicidades e aprendizagens e debater ideias sobre o presente e o futuro das práticas participativas e democracia cultural.

O primeiro dia foi dedicado à troca de experiências entre as estruturas e as equipas de acompanhamento do Teatro Nacional D. Maria II e da Fundação Calouste Gulbenkian. No segundo dia, com a ajuda das mediadoras Carlota Quintão e Maria Vlachou, criaram-se grupos de reflexão sobre os vários campos do trabalho artístico com as comunidades e o papel da participação para a democracia cultural e definição de políticas culturais.

Erguer pontes onde se encontram muros

No total, o programa Atos percorreu 38 municípios de todo o país para, através de projetos de arte participativa, apoiar a criação artística com as comunidades locais, valorizar o tecido cultural nacional e promover as práticas cívicas das comunidades que ali residem. Cada projeto terminou com um momento de visibilidade pública de diferentes formatos, desde espetáculos, percursos, instalações artísticas, assembleias, residências ou convívios.

A questão mais referida nas partilhas da experiência dos projetos foi a dificuldade em gerir o tempo, para alguns demasiado curto para a construção de laços com a comunidade e criação de um objeto coletivo. No entanto, aquilo que parecia um obstáculo ao início foi também o que levou a que as equipas desenvolvessem uma maior capacidade de adaptação e transformação, focando a energia num tempo e espaço concretos.

Esta ideia de dificuldades que se transformam em oportunidades foi, aliás, transversal a todas as conversas do grupo. Na mesma linha, a necessidade de uma apresentação final pode condicionar o processo de criação com a comunidade, mas é também uma forma de trabalhar com um objetivo comum, e permite aos participantes confrontarem-se com um objeto final no qual participaram e em que se reveem.

Outros desafios mencionados foram a ausência de mediação entre municípios e comunidades, dificultando o processo de chegar às pessoas que normalmente não têm acesso a este tipo de iniciativas; a comunicação (dentro e fora da comunidade); a falta de espaços com condições técnicas adequadas e a adaptação às características específicas de cada território. Do lado positivo, ficam os laços e as pontes que se erguem entre pessoas de diversos contextos, os encontros inesperados e as ferramentas que resultam desses encontros e que ficam para memória futura, ou até encontram quem lhes dê continuação.

Para Luís Sousa Ferreira, adjunto da direção artística do Teatro Nacional D. Maria II, o quadro é equivalente a um amor de verão. “Sabemos que o amor de verão tem um princípio e um fim, e por isso é que é tão mágico, avassalador e transformador. Permite-nos ter memórias de cheiros, cenários, e tem muitos mais efeitos do que imaginamos. O desafio foi um amor de verão com cada território”.

Tornar o desconforto num lugar confortável

Outra analogia que marcou o encontro foi a ideia de “projeto regador”, por oposição à de “projeto-semente”. Segundo Samuel Coelho, do Coletivo Espaço Invisível, “a semente já lá está”, pelo que o papel de um projeto como aqueles que o Atos propõe é de regar o solo e fazer florescer, através da escuta e da criação de um lugar de fala comum.

Do solo dos vários projetos nasceram perguntas, vontades e desejos, mas também confrontos e conflitos. Há um desconforto neste lugar de questionamento que é impulsionador de toda a transformação, mas também assustador e “muito desgastante”, nas palavras de Maria João Mota, da associação PELE. Aí, revela-se a importância da construção de uma rede de suporte e segurança como base que fomenta à prática do risco, do bem-estar e do conforto.

Esta e outras questões fulcrais como a mediação, as práticas artísticas e o tempo do trabalho com comunidades, formas de gerar participação ou o papel da instituição ocuparam os grupos ao longo do segundo dia. Em relação a este último ponto, ficou clara a necessidade de desconstruir o peso associado ao conceito de instituição e construir instituições mais flexíveis e adaptáveis à sociedade em que se inserem – como um rio que corre e flui, matando a sede a quem dele vai beber e ultrapassando as ocasionais pedras no caminho.

“Um novo sentimento de nós”

“A participação por si só implica a prática do risco e do desejo”, dizia-se, num dos grupos de reflexão sobre “democracia cultural, políticas culturais e participação”. É preciso coragem e vontade para assumir o compromisso que um projeto de participação exige ao participante: um salto no desconhecido, um abraçar do desconforto, de um olhar curioso e provocador. É esse espaço que criam estes projetos e que normalmente está ausente na vida cívica de cada um.

No entanto, só pela participação poderemos chegar mais perto da democratização da cultura. É o risco e o desejo que catalisam a ação e provocam a transformação e devem, por isso, motivar a visão coletiva das políticas públicas culturais. Então, como ativar coletivamente os desejos? Como tornar os desejos política cultural? Estas foram as questões que fecharam o último debate.

No fim, há ainda certamente muitas perguntas por responder e problemas por resolver. No entanto, fica em todos a nítida sensação de que a participação vai conquistando o seu espaço, lentamente, construindo, tal como manda o mote da associação Ondamarela, “um novo sentimento de nós”.

Em parceria com a Fundação Calouste Gulbenkian, o Atos é um dos cinco programas da Odisseia Nacional do Teatro Nacional D. Maria II. Passou por terras e cidades de norte a sul do país, incluindo a Madeira e os Açores, e envolveu dezenas de estruturas culturais e algumas centenas de participantes de diferentes proveniências. O programa continua em 2024, para sistematizar os conhecimentos adquiridos, proporcionar espaços de encontro e promover a realização de novos projetos com outras condições e ferramentas, nesta área central à missão e objetivos da Fundação Gulbenkian e do Teatro Nacional.

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