Arte e Comunidade: Tensão entre o artístico e o social
Depois de três anos (2014-2016) como coordenadora de um projeto apoiado pela iniciativa PARTIS, em 2018 passei a integrar a equipa de gestão da PARTIS na Fundação Calouste Gulbenkian. Aparentemente, mudei de lado, passei do lado de quem está no terreno a desenvolver projetos artísticos com comunidades para o lado de quem financia esses projetos.
Mas, se parece que mudei de lado, certamente não mudei de caminho. Mantiveram-se os objetivos e as razões que me guiaram quando o meu percurso profissional me levou a querer contribuir ativamente para que a arte esteja presente na formação e na vivência de mais pessoas, e de pessoas que, por condicionalismos diversos, estejam em situações que lhes dificultam ou impedem o acesso à fruição e/ou à criação artística e à participação cultural.
Integrar a equipa PARTIS pareceu-me uma extraordinária oportunidade para aproximar “os lados” e misturar as áreas (artística e social), tanto no meu processo pessoal de aprendizagem contínua, quanto no percurso que a própria iniciativa se propunha explorar.
Uma das questões centrais das discussões e aprendizagens da equipa PARTIS está presente no nome da própria iniciativa: PARTIS – Práticas Artísticas para a Inclusão Social. Expressões como “a arte como meio de promover a inclusão social” ou “a arte ao serviço da transformação social” têm sido um território fértil para reflexão e evolução.
A partir de que perspetiva olhamos para a arte e para o seu poder transformador? A arte é um meio para intervir em “situações de vulnerabilidade social”, ou a arte é um fim em si mesma? Ou poderá ser ambos? A arte, por si, não transforma situações de vulnerabilidade social. O que ela faz é oferecer às pessoas que participam nos seus processos a possibilidade de cumprirem mais plenamente o seu potencial.
A arte, por si, não transforma situações de vulnerabilidade social. O que ela faz é oferecer às pessoas que participam nos seus processos a possibilidade de cumprirem mais plenamente o seu potencial.
E, ao sermos pessoas mais plenas, mais criativas e livres, temos também maior capacidade de sermos socialmente mais implicadas e responsáveis, contribuindo para transformar situações de desequilíbrio social e para desenvolver uma sociedade mais tolerante, mais empática e justa.
Uma das grandes diferenças de perspetiva sobre o trabalho da arte com comunidades parece-me estar naquilo que são o foco e a motivação de cada um de nós para o desenvolvimento desse trabalho: centramo-nos na vulnerabilidade da pessoa ou centramo-nos no potencial criativo da pessoa? É essa diferença de motivação que, segundo Marta Porto no seu livro Imaginação. Reinventando a cultura (2019), distingue o trabalho social do trabalho cultural.
Uma das grandes diferenças de perspetiva sobre o trabalho da arte com comunidades parece-me estar naquilo que são o foco e a motivação de cada um de nós para o desenvolvimento desse trabalho: centramo-nos na vulnerabilidade da pessoa ou centramo-nos no potencial criativo da pessoa?
Um projeto social pode usar as práticas artísticas para proporcionar melhor qualidade de vida aos que nele participam, para desenvolver as suas capacidades pessoais e de relação com o mundo, para minorar uma situação de desvantagem social.
É inequívoco que a arte oferece dispositivos valiosos para o desenvolvimento do indivíduo e para a forma como este se relaciona e se posiciona na sociedade. Mas o facto de ativar práticas artísticas no seu processo de trabalho não é suficiente para que um projeto se possa afirmar como artístico.
Se o seu foco é dirigido para a problemática social a que um indivíduo possa estar associado, mais do que para a prática e a criação artísticas a desenvolver com ele, então não devemos confundir esse trabalho com um projeto artístico. A clarificação do que são projetos artísticos com comunidades e projetos sociais que usam ferramentas artísticas é essencial, num momento em que estas práticas têm vindo a ganhar cada vez maior expressão. Temos, por vezes, encontrado essa falta de clareza em algumas equipas que pretendem candidatar os seus projetos ao apoio da PARTIS.
Imaginando um exemplo para aquilo que tento transmitir: uma equipa apresenta-nos o que diz ser um projeto artístico que envolve pessoas com deficiências. Quando detalhado, demonstra ser um projeto que realiza sessões regulares de dança com objetivos sociais: promover o bem-estar dos participantes, melhorar a sua mobilidade física, reforçar o sentido de grupo e a confiança, aumentar a sua autoestima, etc.
As sessões de dança culminam em cada ano com uma apresentação pública/espetáculo para as famílias e aberta a todo o público – uma apresentação cujo objetivo maior é mostrar o trabalho que aquele grupo desenvolveu durante o ano nas sessões de dança. Não encontramos no propósito nem na estrutura do projeto (quer nas sessões de dança, quer no espetáculo) uma motivação e objetivos artísticos claros que façam dele um projeto artístico.
Para que se possa fazer um trabalho sério e consequente é fundamental estar bem consciente da motivação, do espaço de atuação e da finalidade do projeto que se quer desenvolver, mais ainda quando nos propomos potenciar a qualidade de vida das pessoas. Projetos sociais e projetos artísticos são igualmente válidos e necessários, mas têm características bem distintas que devem ser entendidas para que melhor se possam implementar e tirar partido das especificidades e valências de cada um.
Um projeto artístico, por seu lado, foca-se no potencial, na energia criativa de cada indivíduo e no que ela pode trazer de único para uma criação. O seu fim, a sua prioridade, está na arte e não na problemática social que possa estar associada a uma pessoa. Se a prática artística for “dominada” pela lente da intervenção social, ela fica privada de uma parte da sua liberdade e potência que são, no final, a essência do poder transformador da arte.
É nesse espaço e nesse tempo expectantes que caracterizam o processo de criação, nessa liberdade e potência latentes, que uma pessoa pode expressar-se mais plenamente, sem o peso dos rótulos impressos pela sociedade. E é também no terreno da arte que a sociedade, enquanto público, pode testemunhar a singularidade e valorizar o contributo de cada pessoa para uma determinada obra, com um menor grau de preconceito e julgamento em relação ao contexto social, status ou condição dessa pessoa.
Olhar para uma pessoa no lugar de criadora é permitir-lhe ser o que ela desejar ser, com um universo de possibilidades que depende essencialmente das suas próprias escolhas, mas também das oportunidades e condições que tiver para as desenvolver.
Voltando ao exemplo apresentado anteriormente: ao desenvolvermos um projeto artístico com pessoas com deficiências, a nossa motivação e o nosso foco devem estar naquilo que essas pessoas criam ou podem criar, no que elas trazem de único para uma criação e em proporcionar-lhes ferramentas para que possam desenvolver a sua capacidade criativa, ao invés de estarmos focados na sua condição de deficiência.
É também preciso sermos vigilantes para não cairmos em posições paternalistas e condescendentes quando trabalhamos com pessoas que vivem numa condição que a sociedade identifica como sendo de desvantagem. Ao olharmos para o trabalho criado por essas pessoas, importa vermos não o que elas conseguiram fazer “apesar” da sua condição, mas sim o que essas pessoas, enquanto indivíduos singulares, nos apresentam, nos propõem.
O trabalho artístico coloca a nossa atenção num objeto ou objetivo que está fora da pessoa que o cria, e isso permite à pessoa sentir-se menos individualmente exposta ou julgada, e permite ao público avaliar o objeto criado e não a pessoa que o criou.
A tensão entre o social e o artístico sempre esteve presente no percurso de crescimento da iniciativa PARTIS. E, neste nosso caminho de aprendizagem e amadurecimento, tem-se mostrado cada vez mais claro que aquilo que diferencia o trabalho da maioria dos projetos PARTIS, e que pretendemos continuar a estimular, é a capacidade de combinar e fazer coexistir as duas vertentes: ter como objetivo uma criação artística participativa e ao mesmo tempo trabalhar com os participantes do projeto aspetos sociais com os quais se relacionam.
Por essa razão, os projetos que se candidatam ao apoio PARTIS precisam de ter uma equipa mista que inclua profissionais da área artística e da área social. Os projetos PARTIS são, por isso, híbridos, desbravam um território novo de interseção, uma nova forma de relação entre arte, comunidades e problemáticas sociais.
Tem sido muito entusiasmante participar nesta viagem de descoberta e de definição, e também muito desafiante, como acontece com tudo o que é novo. Um dos desafios que temos vindo a referir frequentemente é a falta de um vocabulário comum para quem trabalha nestes projetos, particularmente na língua portuguesa.
Percebemos, por um lado, que não existe vocabulário e precisamos de criar um novo “em tempo real”, para dar respostas e suprimir lacunas e, por outro, descobrimos como, por vezes, denominamos de forma diferente uma mesma realidade, dependendo de qual é a nossa área de experiência. Para evitar equívocos e entraves nos processos de trabalho, parece ser necessário pensarmos esse vocabulário em comum.
Não se trata de uniformizar as linguagens, mas sim de conhecer os significados que atribuímos às palavras que usamos, para que possamos ter um chão comum de comunicação. Claro que esse vocabulário deverá estar sempre em atualização para integrar aprendizagens, mudanças de direção e descobertas que os tempos que vivemos nos proporcionam a uma velocidade muito acelerada. Não será uma meta que se atinge, mas poderá proporcionar-nos uma certa “estabilidade em mutação” que nos permite avançar com maior sintonia.