Quando errar é possível e a dúvida é bem-vinda

Inês Gomes é mentora de 41 crianças e jovens no âmbito do projeto GAP – Gulbenkian Aprendizagens. Ajuda-os a recuperar matéria perdida durante o confinamento e a acreditar que ninguém tem de ficar para trás.
© Márcia Lessa
27 abr 2021

Denise e Sidney já andam na escola com outro ar. Denise, a pré-adolescente de olhar doce e personalidade reservada, parece outra, a rir, no meio das amigas. Sidney, com o rap a correr-lhe nas veias, é naturalmente mais expansivo mas com o regresso já se pode voltar a distrair no meio do recreio e a perder a noção do tempo sem que deem por ele.

Durante estes meses de confinamento, Denise e Sidney andavam com um ar mais desamparado nos corredores desertos e nos recreios abandonados da Escola Básica Maria Keil, em Loures. Filhos de “trabalhadoras essenciais”, enquanto as escolas se mantiveram fechadas, Sidney e Denise continuaram em ensino presencial.

Em 2020, no primeiro confinamento, o caso foi diferente. Ficaram em casa, que remédio, e o isolamento, a falta de apoio dos professores e do estímulo dos colegas de turma puxaram-nos para trás, em termos de aprendizagens. Foi essa a razão (entre outras) para estarem agora a ter o apoio da Inês Gomes, a mentora da Teach for Portugal que duas vezes por semana se junta a eles e os tenta ajudar a ir mais longe a português, através do programa GAP – Gulbenkian Aprendizagem.

 

“O gostinho de estar a viver um conto de fadas”

Inês entrou neste processo por mero acaso. Formada em Filosofia, a fazer uma pós-graduação em Arte da Escrita e a pensar fazer mestrado numa área de ensino, não tem contas em redes sociais. A sua vida passa mais pelos livros. Mas no natal de 2020, um primo pediu-lhe, como presente, para aderir ao Instagram e seguir a sua conta. Não imaginava que o pedido a faria receber uma mensagem a encaminhá-la para a campanha de seleção de mentores da Teach for Portugal e à possibilidade de fazer parte do projeto GAP – Gulbenkian Aprendizagem.

Passou todo o processo “com o gostinho de estar a viver um conto de fadas, que me estava a direcionar para o que queria, para algo de significativo”, conta hoje, já com 41 crianças e jovens a seu cargo. Dá-lhes apoio na disciplina de português, ajuda-os a recuperar aprendizagens perdidas ao longo dos confinamentos, a perderem medos, a ganhar confiança.

“Ajuda a brincar com as palavras”, explica Denise, uma craque no jogo do STOP. Naquela quarta feira de março, ainda confinados, Denise, Inês e Sidney juntaram-se na biblioteca da escola para ler um excerto do livro A Árvore, de Sophia, e encontrar uma solução para o facto de a aldeia estar a ser engolida pela sombra.

Denise © Márcia Lessa
Denise © Márcia Lessa
Inês Gomes © Márcia Lessa
Inês Gomes © Márcia Lessa
Sidney © Márcia Lessa
Sidney © Márcia Lessa

 

“Quem apanha um autocarro errado é estúpido?”

Para continuar a história começada por Sophia, Sidney não se aventurou pela poesia, como faz sempre que pode. Em cinco linhas sem sinais de pontuação, sugeriu pragmaticamente que se podasse a árvore. Já Denise, que encetou a página com um “era uma vez”, acabou por propor que se expandisse a ilha. Nenhuma das opções estaria certa nem errada. O objetivo era estimular a criatividade, porque “o confinamento não fecha só a porta da escola – fecha também a porta da imaginação”, sobretudo a crianças que “nunca saíram da sua comunidade”, explica a mentora, a quem uma das crianças, que vive com vista para o Tejo, perguntou um dia “o que é um rio?”

Além da criatividade, Inês também estimula, através de jogos, a leitura, o encadeamento de ideias, o começar e acabar frases para que não percam o sentido. Também considera muito importante abordar a questão da dificuldade, do medo do desconhecido, do erro, desmistificar a ideia de que “quem erra é estúpido”. “Quem apanha um autocarro errado é estúpido? E quem puser uma meia diferente da outra, também é estúpido?”, devolve-lhes Inês.

Tudo tem um certo enquadramento, um contexto. Quando, na primeira sessão, a mentora pediu aos dois pré-adolescentes para partilharem coisas que gostassem de fazer, coisas que gostariam de fazer melhor e coisas para as quais não tinham jeito nenhum, foi surpreendida com um comentário, no final: nenhum adulto tinha antes dela admitido não saber fazer qualquer coisa. É por isso fundamental, diz, transmitir que ali não há escrutínio. Ali, errar é possível e a dúvida é bem-vinda. Só assim se consegue seguir em frente.

© Márcia Lessa
Sidney, que se perde com as palavras e adora poesia, quer ser músico © Márcia Lessa
Denise sonha viajar para França e saber falar francês, mas é médica que quer ser © Márcia Lessa

 

Denise, que suspira por ir a França e aprender a falar francês, quer ser médica. Para Sidney, o futuro passa pela música – quer ser cantor. Inês está junto deles para os ajudar a recuperar na disciplina de português, mas também a perceberem que podem ambicionar sempre mais e a contrariar o seu meio, que nem sempre permite que tenham perspetivas longas. Nem de propósito, o lema da escola, por que passam todos os dias, parece feito à medida: Investir no presente, acreditar no futuro.

Saiba mais sobre o projeto GAP – Gulbenkian Aprendizagem

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