Um tablet para combater a solidão

O projeto Humanamente @tivos aposta nos afetos e na competência tecnológica dos idosos do concelho de Beja
Terapeuta Sara © DR
11 fev 2021

Sara Lopes, terapeuta ocupacional, termina a sua visita domiciliária semanal a António e Domingas Piriquito, um casal alentejano que vive numa pacata rua da cidade de Beja. Como habitualmente, desde que a pandemia os obrigou a uma reclusão forçada, António, de 74 anos, e Domingas, de 76, estiveram a realizar, sob a orientação de Sara, uma série de atividades de lazer mas também de estímulo cognitivo com o propósito de exercitar a atenção, a memória e o cálculo. António utiliza um tablet, que já vai dominando por força de meses de prática, mas Domingas prefere recorrer a técnicas mais tradicionais, como o desenho ou a pintura.

Acabada a visita, já na rua, Sara acena aos dois, que permanecem à janela a vê-la afastar-se. “Saio daqui sempre de coração cheio, sempre satisfeita com aquilo faço e oiço” afirma Sara Lopes sobre a sua participação no programa Humanamente @tivos, promovido pela Cáritas Diocesana de Beja, o apoio da iniciativa Gulbenkian Cuida e que foi com criado “para dar apoio a uma faixa etária que precisa de carinho”, como gosta de salientar.

António Piriquito© DR
Sara Lopes numa sessão de terapia ocupacional com António e Domingas Piriquito © DR

Um projeto de proximidade

As visitas regulares de Sara, realizadas desde maio de 2020, são a espinha dorsal deste projeto financiado pela Fundação Gulbenkian e pelo Instituto da Segurança Social, que trouxe a estes idosos, pela primeira vez, um acompanhamento personalizado de uma terapeuta. Ela passou a ser também o precioso elo de ligação entre os familiares e a equipa de profissionais que garante o funcionamento do projeto.

Sara Lopes sublinha “a ligação emocional e humana” e os “momentos de grande afeto, carinho, e proximidade” que estabeleceu com todos os utentes que permitiram ultrapassar alguma resistência inicial motivada pela presença de uma desconhecida em suas casas. Uma vez alcançada a confiança, deu-se “uma importante participação de todos neste projeto”, congratula-se Sara.

Foi o caso de António Piriquito que se move com alguma dificuldade, apoiando-se nos móveis e nas paredes de sua casa para se sentir mais seguro, e a quem o confinamento aumentou as dificuldades de movimento. Em contrapartida trouxe-lhe estas visitas semanais que o desafiaram para outros exercícios que tiveram um importante impacto na sua vida. “Sabia que a seguir ao almoço tinha o meu tempo para estar ocupado com as atividades do tablet e era uma forma de relaxar de tudo o resto. Ajudou-me também a ativar o cérebro, a conhecer, a aprender e a partilhar momentos”.

Uma equipa multidisciplinar

O projeto da Cáritas de Beja foi uma das 69 iniciativas sociais apoiadas, em tempos de pandemia, pela iniciativa Gulbenkian Cuida, para responder às necessidades de quem, subitamente, se viu fechado em casa, privado de contactos familiares e sociais, sem poder usufruir dos locais de apoio e de convívio habituais, neste caso, nas instalações da Cáritas de Beja. Era, de facto, um cenário propício para o eclodir de manifestações de ansiedade, depressão e agravamento da demência que alguns deles já apresentavam.

Para fazer face a esta situação, no âmbito da primeira fase deste projeto, de maio a dezembro de 2020, foram realizadas 448 visitas domiciliárias e mais de 225 atividades de terapia ocupacional, motora e sensorial, junto de três dezenas de idosos do concelho, entre os 74 e os 89 anos. Toda a logística assentou numa equipa multidisciplinar composta por uma investigadora social com funções de direção técnica, uma terapeuta ocupacional, um psicólogo clínico e um coordenador geral com formação em animação sociocultural e em Desenvolvimento Comunitário e Empreendedorismo. A estes elementos somaram-se cinco técnicos na área dos cuidados geriátricos, que se deslocaram diariamente a casa dos idosos para prestar cuidados básicos de higiene e de alimentação.

António Piriquito© DR
António Piriquito realiza exercícios no seu tablet © DR

Tablets para combater a solidão

Além de atender às necessidades básicas, o projeto destacou-se por oferecer, num quadro de incerteza e solidão provocado pela pandemia, a segurança de uma presença regular e calorosa, ajudando os utentes a sentirem-se acompanhados, ativos, valorizados e enraizados no dia-a-dia. O projeto introduziu-os ao “admirável mundo novo” tecnológico, e o tablet passou a constituir para muitos, como para António Piriquito, um recurso indispensável para realizar exercícios e também para efetuar videochamadas para os familiares. Para a grande maioria foi um processo muito desafiante, as novas tecnologias constituíam uma novidade absoluta, mas os receios foram-se esbatendo à medida que iam aprendendo a utilizar o tablet e a aceder, de forma autónoma, a diferentes conteúdos e exercícios disponibilizados numa plataforma. Além das competências tecnológicas, foram igualmente trabalhadas competências pessoais como a motivação, o espírito empreendedor e a resiliência à frustração.

Manuela Guerreiro fala com a família por vídeochamada © DR
Manuela Guerreiro fala com a família por vídeochamada © DR

A alegria de ver a filha

Outra das beneficiárias deste projeto é Manuela Guerreiro, 77 anos, viúva, e também já utente da Cáritas de Beja antes da pandemia. A viver sozinha, tinha-se deixado invadir um pouco pela tristeza e pela solidão: “Os meus filhos estão longe, a minha filha vive na Alemanha e o meu filho em Gaia.” Mas tal como António Piriquito, a participação neste projeto deu-lhe um novo ânimo: “Passei a estar mais ocupada e a preocupar-me menos com as coisas. Puxei pelo meu cérebro e deixei de pensar nas coisas negativas”. Mas o mais importante, confessa, ”foi ver a minha filha que não via há três anos, através de uma vídeo chamada. Foi uma grande alegria poder falar com ela”. Manuela Guerreiro destaca a ajuda da terapeuta Sara, sem a qual, confessa, “nada disto seria possível”.

José Carrega e Terapeuta Sara Lopes © DR
José Carrega trabalha no seu tablet sob a supervisão de Sara Lopes © DR

Não dar pelo tempo passar

José Carrega, também abrangido por este programa, tem 85 anos e usa uma cadeira elétrica para se movimentar em virtude de uma poliomielite que lhe que afetou os membros superiores e inferiores na infância. Apesar das limitações, tudo faz para manter uma vida normal. “Vou dar os meus passeios e tento estar sempre a par das notícias, através do Diário do Alentejo”. Com este programa diz que passou a estar “mais ocupado e distraído”. Quando o tempo está de chuva, aproveita para fazer os exercícios do caderno de atividades e estimular o cérebro e assim “não dou pelo tempo passar”. Não estava habituado a este tipo de trabalhos e agora faz coisas “que nunca tinha pensado conseguir fazer.”

Face ao grande sucesso deste projeto, que tem como parceiros locais a Associação Alémemória e a Câmara Municipal de Beja, a Fundação Calouste Gulbenkian renovou o seu apoio este ano, mantendo-se a intervenção nos mesmos moldes. O projeto atua na área das Uniões de Freguesias da cidade de Beja e nas freguesias rurais de Cabeça Gorda, Nossa Senhora das Neves e Santa Clara de Louredo.

 

 

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