Aprender, Brincar e Crescer sem pensar na guerra

Em Lisboa e noutras paragens do país, há espaços criados para que crianças ucranianas consigam viver como se a sua terra, a 4000km, não estivesse debaixo de fogo.
27 jul 2022

Emily, quase a fazer dois anos, saltita de brinquedo em brinquedo sem se decidir por nenhum em particular. Bogdana (cujo nome significa “Deus dá”) está, pelo contrário, muito compenetrada a cortar papéis, numa mesa colorida. Tymur mantém-se a um canto, na expectativa de que os seus amigos cheguem, para poder brincar como brincam os rapazes de seis anos. Margarete, por perto, faz outro puzzle enquanto controla, do canto do olho, o primo Dmytro, a quem carinhosamente chamam Dima.

 

Dima averigua as suas possibilidades e decide sentar-se a fazer um loto, na companhia de Tetiana, a educadora. Depois de quatro ou cinco meses num jardim de infância, em Lisboa, Dima oscila entre o português e o ucraniano. “’Slony’ aqui”, diz, para que Tetiana soubesse onde pôr o elefante. Com a girafa e a zebra a questão não se coloca, já que são palavras que se dizem da mesma forma em português e em ucraniano. No fim, remata com um “’Khochu” mais” (“Quero mais”).

Não haveria muito mais. Estava na altura de saírem para o parque infantil, a dois passos do Gabinete ABC instalado nas Olaias, numa sala da empresa de Roman Kurtysh transformada em espaço de brincadeiras para crianças ucranianas com idades inferiores a 6 anos. A sala está impecável, com uma relaxante música ambiente, mesas à medida dos seus ocupantes, casinhas, balões, uma zona de estar com almofadas e muitos livros, puzzles e outros jogos para aquelas idades. Tudo feito para os miúdos brincarem e viverem tranquilamente a sua infância como se a 4 000km a sua terra, a Ucrânia, não estivesse debaixo de fogo.

 

Um espaço onde não se fazem perguntas difíceis

Emily, Bogdana, Tymur, Margarete e Dima, bem como Ivan e Mariana, que se juntariam mais tarde ao grupo, são apenas sete das 82 crianças que já frequentaram aquele playgroup “ABC – Aprender Brincar Crescer” (GABC), destinado a acolher crianças refugiadas da guerra na Ucrânia. De início, passavam lá duas manhãs ou duas tardes por semana. O projeto evoluiu e agora ficam dois dias inteiros, a pedido das mães, que precisavam desse tempo para reorganizarem a vida, procurar emprego ou até mesmo trabalhar umas horas.

Este é um dos 55 GABC criados no início de maio, em todo o país, por organizações sem fins lucrativos como a Ukranian Refugees UAPT, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. Uma iniciativa lançada no âmbito do apoio de emergência de 1M€ destinado ao alívio da crise humanitária provocada pela guerra naquele país.

Naquela sala, brinca-se como brincam todas as crianças. ©Márcia Lessa

A maior parte das crianças que brincam naquela sala veio para Portugal entre março e abril, com as mães. Tirando um caso, os pais não estão cá nem é assunto de que se fale, não se fosse repetir a comoção sentida depois de alguém ter perguntado a uma mãe de quatro, à espera do quinto filho, onde estava o marido, que tinha morrido há poucos dias na frente de batalha.

As crianças, garante Tetiana, são muito protegidas pelas famílias. Tentam proporcionar-lhes uma certa normalidade. E ali também. “Este é um espaço só nosso, para serem crianças”, diz, procurando as palavras em português. Há quem, apesar de tudo, queira muito voltar para a Ucrânia o mais depressa possível, mas há também quem queira ficar e recomeçar – caso de Yana, 29 anos, mãe da pequena Emily. Está em Portugal desde março, com a irmã e os pais, e não tem dúvidas de que este é o sítio onde quer ver a filha deixar a fralda, começar a falar e crescer.

 

Tetiana vibra com cada conquista dos mais novos – neste caso de Dima ©Márcia Lessa
Mas Tetiana também conversa e dá colo… vê-se bem a cumplicidade que mantém com as crianças (aqui com Bogdana e Margarete) ©Márcia Lessa

“Começou a guerra e não tinha outra hipótese”

Não é do amarelo que traz vestido – é a própria Tetiana que irradia como um sol, naquela sala. Tanto dá ordens (sempre com um tom doce) como dá colo, orienta, conversa, acompanha as músicas infantis ao piano, brinca… vê-se que está no seu elemento. Está em Portugal há nove anos, mas não perdeu o jeito – na Ucrânia, era diretora de um Jardim de Infância.

Está a tempo inteiro naquele GABC. De início, tudo se fez à base do voluntariado, mas as ajudas não duram para sempre. No início, conta Roman, era ver os camiões à porta, com entregas das mais variadas espécies. “Agora chega um muito de vez em quando…” O apoio da Gulbenkian veio abrir muitas portas, diz, e permitir, por exemplo, contratar pessoas como Tetiana.

Roman é o homem que fez tudo acontecer e presta apoio em todas as frentes ©Márcia Lessa

Roman é o responsável pelo espaço e por todas as atividades da Ukranian Refugees UAPT. Em Portugal vai fazer 20 anos, conta que “começou a guerra e não tinha outra hipótese” senão criar esta estrutura para ajudar os seus. Transformou a sua empresa em armazém de bens, distribuidor de roupa, comida, medicamentos, call centre, prestador de apoio jurídico, entre tantas outras coisas. Nos primeiros tempos, esta sala cheia de crianças era um centro de acolhimento, onde os recém-chegados (mães com bebés de colo sem saber para onde ir) podiam pernoitar até encontrarem poiso. Agora, é um espaço que promove contextos de socialização e de experimentação através do brincar. “Sem o apoio da Gulbenkian isso não poderia acontecer”, garante, no seu português com sotaque ucraniano. “Ucraniano não. Russo”, corrige.

Casado com uma compatriota, Roman fala russo em casa. Explica que há muita confusão sobre o assunto e que na escola, a língua materna, na sua altura, era o russo.  A mulher, por seu lado, é de Kharkiv, cidade ucraniana sob influência russa – mas esta conversa daria para toda uma outra reportagem. Quando tenta falar a língua do seu país, explica, o que lhe sai é “surjik”, uma mistura entre russo e ucraniano equiparável ao nosso “portunhol”. Enfim, seja em russo, ucraniano ou noutra língua qualquer, o que mais se ouve, naquela sala das Olaias, são os guinchos e as gargalhadas que só as crianças pequenas sabem dar.

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