Leonor Nazaré
Atenta à geração de artistas emergentes, a equipa do CAM procura oferecer espaço à sua expressão, a par da restante programação. Esta exposição resulta de um convite feito a Fernão Cruz para a realização de uma exposição individual e corresponde a um projeto pensado de raiz para a Fundação Calouste Gulbenkian e, portanto, com obras inéditas: pintura e escultura instaladas em dois espaços sucessivos, mas distintos e separados por um corredor que o visitante é convidado a percorrer.
A pintura é um espaço de ficção exaltado pelo humor e por gestos expansivos. Passa a ser também, neste projeto, porta basculante para outra dimensão: uma passagem estreita e um lugar escurecido onde a escultura fica em queda livre, num abismo insondável.
Da pintura de Fernão Cruz fica sempre a impressão forte da sua componente lúdica, da cor esfusiante, da diatribe linguística, dos jogos de palavras e formas, dos recortes e da plasticidade, da escala em função de uma necessária rapidez dos olhos e das sensações. O mundo pode ser essa festa em que um desenho contínuo se anima nos ecrãs, em que uma surrealidade onírica descomprometida e caótica se reveste de efervescência, metamorfose, singularidade, erupções, escorrência, surpresa, absurdo, contorção, desfaçatez e inconsequência. Mas um trabalho, diz Fernão Cruz, «tem de ser capaz da sua possível autodestruição». Qualquer trabalho está em movimento contínuo desde que começa a ser empreendido. E se a arte valer pela vida, o trabalho é mutação rítmica e renovada de ambas.
A porta-pintura basculante da primeira sala da exposição é uma proposta de travessia: para o outro lado da pintura e das superfícies, para a experiência do volume, noutro nível de realidade. Sair da segunda para a terceira dimensão e desta para o tempo da morte e para a gestão da luz não significa apenas tornar precária a distinção entre imagem e objeto, ideia e concretização, ecrã e espacialidade; significa sobretudo o abandono voluntário das coordenadas de segurança. «Sala de pânico»? Sala de humor negro e desamparo diante da gravitas da situação.
Os objetos em bronze, que povoam as paredes como ex-votos prosaicos, são apontamentos mais ou menos caprichosos daquilo que atravessa a correria concreta dos dias, mas também da fantasia que os assola. Ao centro, um rapto ilegítimo é consumado por uma ave de rapina gigante: rapto de uma veste (uma pele), de uma camada de alma.