Sheyla Cassy
Bolseira Gulbenkian 2014 – Histórias de Impacto
Antes de me debruçar sobre o meu percurso e sobre a forma como a Fundação Calouste Gulbenkian marcou a minha vida, gostava de ressalvar que ser mulher em Moçambique, ou num país africano, é diferente de ser mulher em Portugal, ou num país europeu.
Nasci numa família estruturada, que me formou e que me preparou para o futuro que hoje tenho, fez-me a exceção de estudar dentro e fora do país à regra de trabalhar ao mesmo tempo que se cuida da família. Sou jovem, sou realizada, sou feliz.
Nasci em Maputo. O meu pai é professor de matemática e a minha mãe é médica. Lembro-me de sempre me ter sido exigido que estudasse, que me empenhasse e que não fosse apenas a melhor aluna da turma, mas sim a melhor da escola.
Até à entrada para a faculdade, queria muito ser médica como a minha mãe, mas como tinha ganhado muitas bolsas e muitas olimpíadas de matemática, como representei Moçambique em eventos internacionais no Centro de Excelência de Educação Matemática e como fui várias vezes reconhecida por ser mulher matemática, acabei por seguir o ramo da matemática como o meu pai, e escolhi a licenciatura de estatística. Ou seja, a exigência dos meus pais, que sei ter sido para o meu bem, cumpriu-se.
Quando entrei na Universidade Eduardo Mondlane para me licenciar em estatística, deparei-me com o facto de ser a única mulher no meu curso, pois naquela altura as áreas/cursos de matemática eram conhecidos como cursos para homens. Havia uma ou outra que assistiam a algumas aulas, mas a fazer o curso era apenas eu. Estar no meio de homens não é muito fácil, mas habituei-me.
O que eu queria mesmo era estudar e esta vontade fez com que, no final do curso, fosse convidada para dar aulas no Departamento de Matemática e Informática da Faculdade de Ciências da Universidade Eduardo Mondlane, ao mesmo tempo que ajudava a fundar uma outra universidade em Maputo, o ISCAM – Instituto Superior de Contabilidade e Auditoria de Moçambique.
O trabalho que tinha no ISCAM, onde era responsável pelo registo académico, permitiu a minha primeira ligação com Portugal, em 2009. O Instituto tinha uma parceria com o ISCA – Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Aveiro e com a Universidade de Aveiro. Esta ligação entre as duas cidades e entre o ISCAM e a Universidade de Aveiro quase fez com que começasse o doutoramento em Aveiro, mas não era essa a minha prioridade nesse ano.
Tinha o sonho de ser mãe, de acompanhar o crescimento do meu filho, de fazer crescer uma família e, em 2011, tudo se concretizou. Sem nunca largar a docência na Universidade Eduardo Mondlane, consegui que os meus planos pessoais e profissionais resultassem em conjunto.
Fui mãe aos 23 anos. Em Moçambique, é expectável que, no fim da licenciatura, se siga o casamento e a maternidade/paternidade. Três anos após o nascimento do meu filho, mais segura do meu valor de mãe e de académica, e com a bagagem da boa nota que tive na licenciatura, lancei-me então à aventura de fazer o doutoramento em estatística na Universidade Nova de Lisboa, na Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT) da Caparica, mas sem sair de Maputo.
Desenhei o meu projeto de pesquisa na área de desenvolvimento de sistemas para análise de dados de amostras complexas, a partir do apoio científico obtido através da coordenação do programa doutoral e de docentes da FCT e do IHMT – Instituto de Higiene e Medicina Tropical, uma vez que quer a FCT, quer o IHMT, tinham parcerias com a Universidade Eduardo Mondlane. E é nesta fase que surge o meu contacto com a Fundação Calouste Gulbenkian.
A parceria Universidade Eduardo Mondlane-FCT dava-nos a possibilidade de estudar à distância enquanto não tínhamos bolsa para estudar fora. Em Moçambique, nós não estamos autorizados a estudar fora se não dermos provas de que temos como nos sustentar no estrangeiro e, para os programas de doutoramento, isso só é possível com a atribuição de uma bolsa.
Ao corrente desta situação e perante a dificuldade de estudar matérias tão complexas sem o seguimento presencial das aulas e sem o contacto direto com os professores, a minha orientadora de tese da FCT desfiou-me a concorrer às Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Calouste Gulbenkian, destinadas a estudantes dos PALOP e Timor-Leste. Que eu recebi. Mais uma bolsa no meu percurso, mais uma conquista, mais uma viagem. Uma grande viagem que eu queria muito e que me deixou muito agradecida.
Cheguei a Lisboa em 2014 e aqui fiquei até 2018. No início, vim com o meu filho e tive o suporte familiar de tios afastados, como também de amigos e colegas que fui fazendo enquanto estudava. Foi muito difícil adaptar-me à cultura, à falta de cheiros e sabores, ao ritmo de vida, à rapidez que não se ajustava à calma moçambicana de se saber levar cada etapa e tive mesmo de reenviar o meu filho para Maputo.
Mas não desisti: sei que a vida dá e tira em equilíbrio, faz parte dos processos de crescimento e de aprendizagem. Hoje, com o doutoramento quase a terminar e com uma segunda casa, que é Portugal, faria tudo de novo, mas percebo que ver o meu filho crescer à distância quando fiz tanto para estar perto dele em todos os seus momentos foi uma prova séria à qual me submeti.
No meu percurso particular de mulher académica, matemática e moçambicana, este aspeto é relevante por não ser o normal. Há gente que sai de zonas rurais africanas paupérrimas para vir estudar para Portugal, pessoas que eu conheci, mas a separação da mãe em relação ao seu filho para estudar longe não é tão comum. Eu fi-lo e isso faz de mim uma professora e uma investigadora mais capaz, uma mulher mais ciente da sua perseverança e determinação.
Reconheço a minha entrega ao estudo, a encontrar um plano de doutoramento que juntasse a estatística e a saúde, no fundo que juntasse a área do meu pai e da minha mãe, mas reconheço mais o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, pois sem ele tudo teria sido em vão, não teria saído de Maputo. Poderia ainda ser professora, mas certamente não seria a académica que sou, com experiências nacionais e internacionais, algumas inseridas na Sociedade Portuguesa de Estatística. Foi com estas experiências, inclusivamente, que se tornou possível estabelecer contactos científicos com pesquisadores da mesma área de interesse, nomeadamente no Brasil e na África do Sul.
E quanto mais saio, quanto mais longe vou, mais tenho vontade de voltar a casa, de entregar à minha cidade e ao meu país o conhecimento de ponta que se alcança no mundo. Porque, para mim, só faz sentido quando se volta e, se há conselho que posso deixar a futuros bolseiros e bolseiras, é esse mesmo: vão longe, procurem no mundo inteiro aquilo que vos inquieta e que vos preenche, mas saibam trazer a inovação e a sabedoria ao lugar que vos viu crescer. Só assim evoluiremos em todos os países, lado a lado.
Histórias de Bolseiros
Desde 1955, a Fundação Gulbenkian apoiou mais de 30 mil pessoas de todas as áreas do saber, em Portugal e em mais de 100 países. Conheça as suas histórias.