“Precisamos de uma literacia em saúde mental perinatal global”
Ter caído numa profunda depressão, após o nascimento da sua primeira filha, fez com que Teresa Reis, médica-psiquiatra, tornasse a saúde mental perinatal numa missão de vida. Hoje, além de muitas outras coisas, coordena o projeto Matter, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian no âmbito da iniciativa Growing Minds.
Teresa Reis fala abertamente do tema, de quantas mulheres se estima sofrerem desta doença em Portugal, do que é normal sentir e a partir de que momento é preciso pedir ajuda, da vergonha, do impacto que a saúde mental das mães tem na saúde dos bebés, das respostas que existem e do muito que ainda é preciso fazer para que as crianças “se tornem adultos mais felizes e mais produtivos para o seu país”.
Ainda se fala pouco de saúde mental, em Portugal?
Nos últimos anos começou a falar-se mais. Das poucas vantagens que a Covid poderá ter trazido foi uma maior atenção para a saúde mental e para as necessidades de cuidados nesta área. A questão é continuarmos com muitas lacunas no acesso aos serviços. A procura de ajuda é crescente mas, em algumas zonas do país, o acesso a consultas de psicologia, de psiquiatria e a outro tipo de apoio é claramente escasso.
Quantas mulheres sofrem de doença mental, em Portugal?
O número exato de mulheres com problemáticas de saúde mental em Portugal não é conhecido. Mas sabemos que cerca de 30% vão desenvolver doença mental no período perinatal, portanto, na gravidez ou no pós-parto. E se estivermos a falar de mulheres com antecedentes de doença mental – que não precisa de ser grave, mas um episódio anterior de ansiedade, depressão, por exemplo – a probabilidade de agravamento ou recorrência da doença é de cerca de 60a 80%.
Portanto, sem dúvida, é uma problemática que a torna numa prioridade de intervenção em saúde.
Fala-se bastante da depressão pós-parto, mas a doença mental perinatal vai muito além disso…
A depressão pós-parto é apenas uma das problemáticas de saúde mental no período perinatal e, na verdade, nem sequer é a mais frequente.
Neste período, há maior probabilidade de desenvolvimento da maior parte das doenças mentais. Além da depressão, o período perinatal é também uma fase em que há mais probabilidade de desenvolver perturbações de ansiedade, perturbação obsessivo-compulsiva, perturbação de stress pós-traumático, ou até doenças mais graves, como doença bipolar ou psicose perinatal.
Qual é que é a razão para uma prevalência tão elevada nesta fase da vida da mulher?
As razões são multifatoriais. Por um lado, o cérebro da mulher muda, de facto, durante esta fase; há alterações neuroquímicas cerebrais um pouco como o que acontece nos adolescentes, que lhes dá uma plasticidade cerebral para a adaptação a este período de desafio, de mudança, mas que ao mesmo tempo pode trazer fragilidade para o desenvolvimento de doença mental. Este é um fator imutável. Depois, existem fatores sociais, comunitários, que têm a ver com as expectativas sociais daquilo que é suposto acontecer neste período. E aqui, uma sociedade muito virada para objetivos, para o “fazer”, acaba por ser mais castigadora e mais precipitante de alguma ansiedade associada àquilo que é ser-se pai ou mãe nos dias de hoje.
Também existem fatores internos – aquilo que os pais e mães se convencem que têm de ser, que têm de conseguir fazer, aquilo que ouvem nas redes sociais, e que muitas vezes é pouco realista e que os prepara muito pouco para aquilo que vai ser uma experiência de total ausência de controle, que é um desafio à estabilidade emocional.
A prevalência da doença mental é maior na primeira gravidez?
A primeira gravidez é sempre um desafio enorme. É muitas vezes sentida pelas mães e pelos pais como um banho de realidade e de ausência de controlo que é muito difícil de integrar.
Muitas vezes também vai ser, em termos das tais mudanças neuroquímicas e cerebrais, a primeira experiência por que a mulher vai passar. Portanto, muitas vezes é nessa altura que tem uma recorrência de uma doença mental que se calhar teve na adolescência, e que fazem com que haja, por exemplo, pela primeira vez, um diagnóstico.
Numa segunda gravidez, a pessoa já vai mais preparada, não só para o cuidado do bebé, mas mais preparada porque sabe emocionalmente o que é que lhe vai acontecer.
O que é normal sentir? A que é que uma mulher deve estar atenta?
O mais normal será a mulher sentir-se, algumas vezes, confusa, perdida, sem saber muito bem que identidade como mãe é esta que veio para ficar. Há também, em termos emocionais, uma flutuação que pode acontecer, sobretudo nos primeiros dias após o parto, que pode incluir o choro fácil, a irritabilidade, a insónia. Mas é muito importante ter a noção que estas alterações, até algum sofrimento emocional adaptativo, só são normais durante algumas semanas. Depois disso é preciso saber pedir ajuda.
A que se deve estar particularmente atento? A partir de que momento se considera que já não é normal?
Não é normal deixar de dormir completamente. Não é normal não conseguir desligar do bebé, estar constantemente em hiper vigilância, preocupada e com medo que lhe aconteça alguma coisa. Não é normal chorar o tempo todo. Não é normal sentir-se triste. Não é normal não ter apetite. Não é normal haver uma sensação constante de que não se é boa mãe e que não se corresponde às necessidades daquilo que, afinal, era imaginado que iria acontecer no pós-parto. Quando isto acontece, deve haver uma partilha destas emoções, destes pensamentos e um pedido de ajuda.
As redes sociais ajudam ou desajudam?
No geral, diria que não ajudam. Mas nas redes sociais há de tudo… Se por um lado podem ter tido um papel interessante ao darem mais espaço às dificuldades da maternidade, por outro, muitas vezes há uma normalização do sofrimento e daquilo que afinal pode ser doença mental.
A maior parte do que encontramos nas redes sociais são informações idílicas, regras, orientações, soluções fáceis, quando nada na parentalidade é fácil, nada na parentalidade funciona durante muito tempo, há uma adaptação constante e uma flexibilidade que não pode ser vendida como uma solução fácil.
Mas se está lá toda a gente, é uma oportunidade muito interessante, para quem tem alguma responsabilidade na literacia em saúde mental, de fazer chegar informação às mulheres no período perinatal. A faixa etária dos 25 aos 40 anos utiliza muito as redes sociais e as mulheres em período perinatal, que estão em casa com os seus bebés, muitas vezes utilizam-nas como uma distração cognitiva, uma forma de se desligar de algumas das dificuldades e até da própria solidão.
O que fazer, quando se identificam sinais de alerta?
Não há nenhuma outra fase em que as mulheres tenham tantas consultas, tantos contactos com profissionais de saúde. Mas a maior parte destes recursos não está vocacionado nem preparado para responder às necessidades emocionais das mulheres, nesta fase. Portanto, apesar da mulher ter seis a oito consultas com o seu médico de família, é raro haver espaço para falar sobre banalidades, que são normalizadas, como “estou mais cansada”, “não durmo” e em que a resposta muitas das vezes é “é o corpo que se está a preparar para o bebé nascer”, o que é uma falácia, um mito completamente errado.
O acesso está tão facilitado e até padronizado, a vigilância é tão próxima, que é uma oportunidade que se está a perder. Seria de aproveitar uma destas oportunidades para dizer “ok, a minha tensão arterial está boa, a glicemia voltou a estar boa… hoje quero falar sobre o facto de não me sentir bem, sentir-me triste, ansiosa, não dormir, não comer.”
Precisamos de uma literacia em saúde mental perinatal global, precisamos que as famílias não desvalorizem e não menorizem aquelas que são as queixas não só adaptativas, mas já sinais de doença mental.
Não haverá vergonha de falar de si própria quando se está a gerar ou se acabou de ter um bebé que requer toda a atenção?
Ninguém quer estar doente, muito menos com uma problemática de saúde mental, e ainda menos no período perinatal, que continua a ser considerado um período dourado, feliz, de concretização de um papel social que se desejou e preparou. Portanto, obviamente que o não cumprimento destas expectativas muitas vezes está associado a sofrimento, a vergonha, a um arrastar de situações que, eventualmente, noutro período, não aconteceriam. “Está tudo a correr bem, aqui está a gravidez que eu desejei, aqui está este bebé lindo, aqui estão as pessoas à minha volta a dizer que não percebem porque é que eu estou assim e, obviamente, isto aumenta a minha culpa, a minha vergonha e a minha dificuldade em procurar ajuda.”
Qual é o impacto da saúde mental de uma grávida na saúde mental da criança?
Uma mulher que está grávida ou que tem o seu bebé, quando está doente, não está doente sozinha, está integrada numa díade e, obviamente, aquilo que lhe acontece vai ter consequências no seu bebé.
O que sabemos é que os filhos de pais com doença mental podem ter uma probabilidade de até 13 vezes superior de vir a desenvolver doença mental. Portanto, quando estamos a falar de saúde mental no período perinatal, não estamos só a falar da saúde da mulher, que é, obviamente, importantíssima, e que merece, tem direito, a ser adequadamente tratada; estamos, na verdade, a falar da saúde mental da díade mãe-bebé, das consequências que esta doença vai ter para este bebé e para toda a construção familiar. A probabilidade de doença aumenta no bebé, no companheiro ou companheira e, portanto, mais uma vez, é absolutamente essencial que o cuidado na saúde mental perinatal seja uma prioridade.
Fala-se muito pouco dos homens, nesta fase…
Mas a doença mental no período perinatal não tem só um pico de incidência nas mulheres. Também acontece aos homens. Eles também estão lá, também estão a vivenciar estas dificuldades, também vão ter de integrar uma mudança identitária muito importante que vai abalar o seu significado enquanto pessoa, o seu lugar na comunidade e tudo isto são fatores que podem precipitar o desenvolvimento de doença mental.
Agora, se há dificuldade de uma mulher em pedir ajuda, a dificuldade é muito maior nos homens.
O que é que a levou a trabalhar nesta área, na saúde mental perinatal?
Eu sou uma sobrevivente de doença mental perinatal. Tive uma depressão muito grave quando a minha filha mais velha nasceu. Na verdade, ia morrendo, estava mesmo muito doente. E eu já era médica, já estava a fazer o meu internato em psiquiatria, tinha muitos amigos psiquiatras, muitos amigos psicólogos, os meus pais eram médicos… e ninguém me ajudou.
Ninguém viu?
Possivelmente viram, mas não sabiam o que estavam a ver.
Eu tinha os sinais todos, estava profundamente deprimida. A certa altura, já não queria viver. E demorou algum tempo a perceber o que se estava a passar e a perceber que aquilo não era o facto de ter uma bebé, que trouxe imensa mudança à vida de uma mulher bem-sucedida, que era médica, estava a fazer doutoramento. A questão não era só essa, mas sim, eu estar doente. E quando finalmente percebi que “isto não é normal, isto não sou eu, passa-se alguma coisa”, comecei por procurar terapia, depois percebi que tinha de fazer medicação.
E quando melhoro, percebo que… “Se isto me acontece a mim, que estou neste lugar de enorme privilégio, o que é que vai acontecer à maior parte das mulheres? Em que lugar negro e sem ajuda é que elas ficam?”
Na altura [há sete anos], não havia formação disponível em saúde mental perinatal na Europa, portanto acabo a fazer as minhas primeiras formações nos Estados Unidos onde, felizmente, ganhei muitos amigos que me levaram a tornar este problema quase numa missão de vida e também a implementar, por exemplo, um dos primeiros programas organizados com rastreio e intervenção num serviço público em Portugal. Continua a ser dos poucos programas destes, a nível nacional, no SNS, que é onde está a maior parte da nossa população.
Conseguiu implementar o programa?
Sim, implementámos este programa, que já celebrou mais de cinco mil intervenções, com recursos extremamente escassos. Só tem os resultados que tem devido a uma enorme dedicação e por acreditarmos verdadeiramente que é uma fase onde as mulheres, as famílias, os pais, as pessoas gestantes, os bebés, precisam de muita atenção, se queremos, na verdade, uma sociedade no futuro mais justa e equitativa. Porque, na verdade, é disso também que estamos a falar em saúde mental perinatal. Porque quando são os mais pobres, os mais doentes a não terem acesso aos cuidados, estamos a alimentar um círculo vicioso de doença e pobreza de onde as famílias muito dificilmente saem.
Esse acaba por ser o embrião do projeto Matter, apoiado pela Fundação Gulbenkian…
O Projeto Matter nasce da vontade de fazer mais, além daquilo que já estávamos a fazer no hospital.
Já tínhamos um programa de saúde mental perinatal organizado, com rastreio e intervenção, mas não estávamos a chegar a todas as mulheres. Para chegarmos a todas as mulheres, tínhamos de estar na comunidade, nos cuidados de saúde primários, onde a maior parte das mulheres vai tendo acesso a uma vigilância de gravidez de baixo risco.
Queríamos pôr a saúde mental perinatal na agenda da mulher ou da pessoa gestante, mas também na agenda dos profissionais de saúde, que estão tantas vezes com estas mulheres, nesta fase da sua vida. A Fundação Calouste Gulbenkian veio permitir que isto se tornasse realidade o projeto-piloto está a dar formação e a permitir uma intervenção que, esperemos, possa chegar a todas as mulheres do Alentejo Central.
Pretende que se aborde a gravidez de uma forma multidisciplinar, que vá além da ginecologia-obstetrícia, que olhe para a pessoa como um todo e a família como um todo. É isso?
Sem dúvida. No fundo, aquilo que precisamos é que não se olhe apenas para o desenvolvimento saudável do bebé, mas também para a saúde física e emocional da mulher ou da pessoa gestante. Até porque se a saúde física e mental da mulher ou pessoa gestante não estiver equilibrada, a saúde da criança também vai ser afetada.
Quando conseguirmos que os profissionais de saúde não olhem só para o bebé e olhem para esta mulher e como é que ela está física e emocionalmente, vamos conseguir ter um ganho em termos de prevenção e promoção da saúde de uma forma global.
Que resultados é que espera obter com este projeto?
Por um lado, a capacitação dos profissionais de saúde. Que consigamos que todos os profissionais envolvidos no período perinatal – médicos e enfermeiros, mas também a área social, os profissionais das CPCJ, das equipas de relação com o Tribunal, as EMATs, os CAFAPs – falem a mesma língua. Por outro lado, conseguir que haja, na gravidez e no pós-parto, um rastreio, e que, na sequência desse rastreio, os profissionais tenham orientações muito claras sobre o que fazer se houver uma situação de potencial doença mental.
É possível quantificar o benefício, para o SNS, deste tipo de intervenção?
Se quiséssemos, sem dúvida que sim, porque se temos gastos associados à doença, também deveríamos conseguir quantificar o benefício económico e custo-efetividade dos programas em saúde mental perinatal. Agora, estamos a falar de programas que não são implementados em um ou dois anos.
Porque mais do que programas, estamos a falar de mudanças comportamentais, e essas demoram tempo e precisam de orientação, de união. E em saúde no geral, e muito menos em saúde mental, não conseguimos fazer uma aferição se não tivermos tempo para avaliar. Precisaríamos, para já, de investir nos programas, e depois conseguir avaliar as crianças intervencionadas. Ora, só nisto, estamos a falar, se calhar, de 10 anos de avaliação com a mesma linha orientadora. E, infelizmente, em Portugal temos muito pouco disto.
Em Inglaterra há muitos estudos que demonstram uma poupança muito significativa. Qualquer doença, se não é tratada adequadamente, evolui. Portanto, temos não só os ganhos de um tratamento que vai permitir a estas mulheres voltarem à sua funcionalidade mais rapidamente, mas também temos um efeito muito interessante nas gerações seguintes. O investimento feito no período perinatal tem uma devolução elevadíssima: pela intervenção na mãe, mas também na promoção da saúde mental destas crianças, a qual previne dificuldades no seu desenvolvimento, que vai fazer com que estas crianças se tornem adultos mais felizes e mais produtivos para o seu país.