Olhar para África de novo
Existe ainda, sobre o continente africano, uma perceção romantizada e associada ao exotismo, uma visão perpetuada pela memória colonial, que demonstra a manutenção de um discurso estereotipado. A persistência deste tipo de narrativas evidencia a continuidade de discursos baseados numa visão centrada em realidades vivenciadas na Europa ou América do Norte e a conservação de estruturas coloniais, comprovando-se a necessidade de um processo de descolonização do pensamento.
Este processo passa por desconstruir a suposição de que o Ocidente moderno é a raiz central da consciência e da herança cultural africana: África não é uma extensão do Ocidente[1]. Trata-se de olhar para aquilo que, do passado, continua a afetar o presente – as histórias e as memórias reprimidas do colonialismo – e de o incluir no debate público.
No âmbito da arte tem-se vindo a verificar, ao nível da produção artística e também da programação de instituições culturais e de plataformas de investigação, uma busca por reflexões críticas sobre a herança colonial e sobre o seu legado no presente, no sentido de se promover uma prática artística mais inclusiva.
Na produção contemporânea, artistas como Maria Lusitano têm procurado pensar sobre a memória colonial, como acontece na obra Nostalgia. Uma «história audiovisual seletiva» que reúne vários media (filmes super 8, fotografias, postais, telegramas, músicas pop e orientações textuais), narrada por um jovem que se junta à sua família em Lourenço Marques (atual Maputo). Perpassa o seu fascínio por uma metrópole colorida e «paradisíaca»[2], que contrasta com a dureza da guerra nas zonas rurais, como se esta fosse uma realidade distante.
Em Nostalgia, a artista portuguesa procura repensar o excesso de memória, como indica o título da obra, evidenciando simultaneamente uma amnésia seletiva expressada pelo silenciamento de histórias e de lembranças do passado colonial consideradas inconvenientes, como a violência da guerra. Ao relembrar o passado, Maria Lusitano permite o revisitar das memórias reprimidas, enfrentando e ameaçando as narrativas hegemónicas.
De forma algo semelhante, em For Mozambique [model n.º 3 for propaganda stand, screen and loudspeaker platform celebrating a post-independence Utopia], a artista portuguesa Ângela Ferreira, ao confrontar o que havia sido esquecido, procura recuperar e reenquadrar discursos culturais do passado, orientando-os para a sua reconstrução no presente. Com uma estrutura em madeira, inspirada nos antigos modelos da agitprop soviética, Ângela Ferreira apresenta vídeos e documentos relativos aos primeiros anos da independência moçambicana[3], construindo um espaço marcado pelo cruzamento de linguagens, estilos e histórias que evoca uma ligação entre a história da arte ocidental e a história política e social africana. Neste sentido, cria momentos espaciais e temporais, associando o presente e a recuperação de imagens e processos criativos e revolucionários do passado.
A ideia de repensar as questões do passado colonial está também presente na instalação Illusions Vol. I, Narcissus and Echo de Grada Kilomba. A artista reconta o mito grego de Narciso e Eco, desconstruindo-o gradualmente e transformando-o numa analogia a uma sociedade que não resolveu o seu passado colonial e que é incapaz de ver além do seu próprio reflexo. Ao recorrer ao vídeo, à performance, ao som e à narração, Grada Kilomba retoma a tradição da oralidade da África Ocidental, fundamental para a preservação do conhecimento durante séculos, explorando também o poder de elementos culturais e tradições da diáspora africana (a oralidade, a produção musical e performativa).
Já na instalação Hidden Pages, Stolen Bodies, de António Ole, o artista angolano aborda um passado mais sombrio, recontando a história de vidas negligenciadas, marcada pelo trabalho forçado sob o domínio colonial no final do século XX. As imagens e os objetos desta obra não são associados a indivíduos específicos: são corpos sem rosto, sem identidade que, para António Ole, demonstram a falta de memória da sociedade sobre um passado ignorado e anónimo, mas simultaneamente procuram reescrever as páginas desconhecidas da história angolana. O revisitar das páginas ocultas da memória cultural da época colonial é motivado pelo desejo de esboçar novas histórias, como meio de repensar o presente e o futuro, procurando lançar um outro olhar sobre a arte contemporânea africana e expressando realidades e discursos que muitas vezes são invisíveis ou subrepresentados no cenário artístico internacional.
O trabalho destes artistas foca-se no passado, mas procura pensar o presente, orientando-se para o futuro e demonstrando como a arte pode ser um mecanismo para a criação de novas linguagens, para contar novas histórias e para subverter narrativas dominantes.
[1] Achille Mbembe, Decolonizing knowledge and the question of the archive, 2015.
[2] Ana Cristina Cachola, «Escrever imagens em nome da guerra em Nostalgia de Maria Lusitano: Quando a colónia mostra a metrópole», Comunicação e Cultura, 2011, pp. 151-169.
[3] Márcia Oliveira, «Considerações sobre o arquivo em práticas artísticas pós-coloniais. Uma reflexão a partir da obra de Ângela Ferreira», Revista Faces de Eva, FCSH-UNL, 2018, pp. 107-114.