O 25 de Abril numa obra da Coleção do CAM escolhida pelo escritor Bruno Vieira Amaral

Nos 50 anos da Revolução do 25 de Abril, propusemos a diferentes gerações que escolhessem uma obra da Coleção do CAM e a relacionassem com este momento decisivo da nossa história recente.
28 mai 2024 4 min

Convidámos um dos mais aclamados escritores da sua geração, Bruno Vieira Amaral, Prémio José Saramago, crítico literário e contista, fazedor e amante da literatura, para partilhar connosco uma estória até então desconhecida. 

Prisioneiro!, de João Abel Manta

Foi numa visita aos jardins do Crystal Palace, com as suas réplicas de dinossauros em tamanho real, que ocorreu a José Cardoso Pires a ideia do Dinossauro Excelentíssimo. Na altura, o escritor dava aulas em Inglaterra, quando Salazar já caíra da cadeira e os que o rodeavam lhe vendiam a ilusão, cruel ou caridosa, do seu perpétuo poder. Em forma de cartas à filha mais nova, Rita, nasceu esta aventura no Reino do Mexilhão, governado por um rapazinho de origens humildes que se tornou dê-érre na cidade dos dê-érres e acaba por se transformar no “Imperador Excelentíssimo”, penteador de parágrafos, purificador da língua, amante da burocracia, dita severa, e pregador das virtudes da pobreza, também chamada humildade ou modéstia.

Cardoso Pires desafiou o amigo João Abel Manta a ilustrar o livro, já depois de o “Botas” as ter batido, e se texto e ilustração se complementam seria criminoso reduzir o trabalho do artista à categoria de apêndice gráfico. Da ilustração em papel azul de vinte e cinco linhas para mostrar a humilde choupana onde nasceu “Dinosaurus I” (uma forma de realçar a construção da verdade histórica oficial) à epopeia bíblica do casal de camponeses que leva na camioneta o filhinho em humildes palhas nascido para estudar na cidade dos doutores, João Abel Manta tem o dom de, à semelhança do que Cardoso Pires fez no texto, através de um olhar sarcástico, reduzir ao ridículo a grande narrativa do poder, a retórica mil vezes repetida de um país pequeno em todos os sentidos, o progressivo isolamento do seu líder e a empáfia dos seus adjuntos.

Fechado numa espécie de bigorna, encimada por aparelhos de difusão, o Imperador vive blindado, protegido de todas as ameaças mas cada vez mais insensível às vozes dos seus concidadãos ou, melhor dizendo, dos seus súbditos, que insiste em bombardear com discursos alheados da realidade, esvaziando as palavras do seu verdadeiro valor. Não há uma comunicação autêntica, um diálogo. O Imperador não fala com ninguém, não se digna a ouvir ninguém. Discursa para um gravador e tudo o que ouve são as gravações da sua voz, a declamar ideias que lhe saíam “em circuito fechado”: 

“Escutava-os depois – melhor: escutava-Se e, como se diz, com ouvido diurno e nocturno, com o ar de mestre que segue a lição do discípulo querido.”

O exercício prolongado e autocrático do poder conduz inevitavelmente à solidão, ao fechamento do líder sobre si mesmo, como uma traça que regride ao estado larvar. As barreiras erguidas pelo poder para se proteger do mundo, para se defender dos ataques dos seus inimigos, são os muros que delimitam o seu território e os seus movimento, como numa paródia de parábola oriental em que um homem se empenha na construção de uma fortaleza para descobrir, no final, que ergueu as paredes da prisão onde irá cumprir pena pelo crime de ter construído a fortaleza. O Imperador, encerrado no seu casulo, transforma-se em prisioneiro nada excelentíssimo.

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