Navegações Revisionistas e Visionárias da Memória Cultural
Nascida em Maputo, Moçambique, em 1958, no seio de uma família de origem portuguesa, Ângela Ferreira teve uma infância marcada por frequentes deslocações e mudanças entre capitais marginocêntricas, entre margens e centros coloniais contestados. No início da guerra colonial e da luta pela independência, a família de Ângela Ferreira deixou Moçambique prosseguindo oportunidades profissionais, migrando primeiro para a África do Sul, então sob o regime de apartheid, depois para Londres e, no caso da artista, para a Lisboa do período imediatamente anterior à Revolução de 1974, que derrubou uma ditadura fascista retrógada e dissolveu o mais recalcitrante dos impérios coloniais europeus.
Posteriormente Ângela Ferreira deixaria Lisboa para regressar a África, completando o Mestrado na Michaelis School of Fine Art da Universidade da Cidade do Cabo e iniciando nesta cidade a sua vida profissional como artista e professora de escultura durante os anos de transição. Em 1989/1990, apoiada por uma primeira bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, regressou a Portugal para realizar uma série de desenhos e esculturas baseadas nas estruturas modernistas representadas no mural Emigração de Almada Negreiros.
Trabalhando entre Maputo, Cidade do Cabo e Lisboa, onde se estabeleceu definitivamente nos anos de 1990, Ângela Ferreira tem desenvolvido instalações que, de modo consistente, mediante um foco particular sobre as formas e os lugares, estabelecem pontes entre diferentes culturas e disciplinas, entre discursos documentais e imaginários, críticos e criativos, entre a ética pós-moderna/pós-colonial e a estética modernista.
Desde as suas primeiras instalações, como Sites and Services (1992) e Casa. Um retrato íntimo da casa em que nasci (1999), passando pela representação de Portugal na Bienal de Veneza de 2007 com Maison Tropicale e na Bienal de São Paulo de 2008 com Para Moçambique, até obras mais recentes como South Facing (2017), os desenhos, esculturas e instalações de Ângela Ferreira procuram modos provocantes de criar e de encarar a arte na esteira de conceções utópicas e da crítica distópica.
A artista tem desenvolvido um percurso pelas margens e pelas realidades mundanas de imaginários culturais contestados, recuperando histórias recorrentes mediante traços ou vestígios estranhamente prospetivos e reconhecendo como horizonte ironias históricas.
Embarcando a partir de ancoradoura na arquitetura modernista, bem como das amarras de uma estética modernista transposta e transcultural, Ângela Ferreira navega rotas arriscadas da memória cultural pós-moderna e da crítica pós-colonial com um apurado sentido da forma e uma sensibilidade muito atenta a determinados elementos subtis do (dis)funcional.
Apoiando-se num conjunto diverso de tradições e instrumentos de navegação – escultura, desenho, fotografia documental –, a artista explora, desenvolve e testemunha a memória coletiva e individual, assim como elementos culturais complexos de perda e anseio, sem dissimular as implicações políticas que subjazem às suas manobras estéticas.
As suas instalações minuciosamente construídas – incluindo as peças escultóricas minimalistas e neomodernistas que lhe valeram os primeiros sinais de reconhecimento internacional com Sites and Services, os despojos de documentação fotográfica de pretextos e subtextos culturais (como as instalações sanitárias incluídas nessa mesma instalação, uma parede de imagens que, de acordo com os seus primeiros críticos, como recorda a artista, «sujava» as linhas modernistas limpas da sua escultura), os fragmentos culturais recuperados e reenquadrados (filmes, livros, e outros documentos), bem como, frequentemente, desenhos (não só preliminares, como também realizados ao longo de todo o processo criativo) – confrontam o espectador com uma visão inquieta e inquietadora, com perspetivas revisionistas sobre o passado e reorientações visionárias do presente.
O lastro que estabiliza a arte de Ângela Ferreira no seu percurso por turbulentas marés culturais é a memória – os vestígios dos seus próprios contextos culturais e travessias transculturais, as transposições de formas arquitetónicas modernistas, os registos e as reconstruções da vida quotidiana nos contextos colonial tardio e pós-colonial, reagrupados de acordo com uma arquitetura pós-moderna.
Uma espécie de navios-fantasmas, abstrações esqueléticas, compósitos de carregados fragmentos revolucionários, as obras vanguardistas e historicamente revisionistas de Ângela Ferreira têm-nos guiado há décadas, e de modo seguro, através da memória de um passado pós-colonial conturbado, em direção a uma resposta de responsabilidade ética e estética.
A sua instalação Para Moçambique [Modelo n.º 3 para quiosque de propaganda, ecrã e plataforma de som, para celebrar uma utopia pós-independência] é uma estrutura estranhamente bela, uma armação que interpela canções, estórias e história, celebratória e esperançosa. Contudo, esta esperança navega rumo a um horizonte de ironia histórica.
Este terceiro e último modelo de um grupo inicialmente projetado de 17 peças lembra de certa forma o elegante esqueleto de um navio, uma construção modernista autónoma, com mastro e cesto de gávea, ecrãs como velas ao vento, uma embarcação sulcando ondas de palavras e imagens filmadas. Criada para a 28.ª Bienal de São Paulo de 2008 e adquirida em 2009 pela Fundação Calouste Gulbenkian para a Coleção Moderna, a instalação tem tanto de arca como de barca.
É uma obra retrospetiva, que evoca momentos e movimentos marxistas eufóricos de ambas as metades do século xx e de hemisférios opostos. A sua ossatura modernista e o seu pacto ideológico sofreram inúmeros deslocamentos ao sabor das inconstantes marés da história. Porém, a peça assume a forma prospetiva de um escaparate de propaganda, inspirando-se nos antigos modelos da agitprop soviética e exibindo documentos comemorativos e filmes documentais alusivos aos primeiros anos da independência moçambicana.
Não obstante uma estrutura relativamente simples, as dimensões espacial, temporal e semiótica da obra são complexas. A combinação de minimalismo e multivalência, característica do trabalho de Ângela Ferreira, revela-se provocante. Conjugados, os seus componentes recuperados, reproduzidos, (re)projetados e (re)construídos dão forma a uma construção limite, a um cronótopo liminar (uma estruturação de espaço e tempo) que atesta a consciência transdisciplinar, trans-histórica e transcultural da artista. Para Moçambique [Modelo n.º 3…] estabelece ligações diretas entre lugares distantes e momentos diferenciados, indicando correlações entre o Moçambique pós-independente e a Rússia Soviética pós-revolucionária.
A artista recorre aqui a diversas tradições estéticas, interpolando diferentes arquitetónicas espaciais e temporais: incorpora gravações em vídeo de trabalhadores moçambicanos cantando e dançando em celebração da independência do país, extraídas da curta metragem documental Makwayela (1975-1977), realizada por Jean Rouch e Jacques d’Arthuis, bem como de Bob Dylan cantando sobre os tempos que gostaria de passar «Among the lovely people living free / Upon the beach of sunny Mozambique» [«Entre o afável povo que vive em liberdade / Nas praias da soalheira Moçambique»], imagens em movimento e que nos comovem projetadas sobre ambas as faces de um ecrã instalado numa estrutura de madeira construída com base nos designs originais concebidos em 1922 pelo artista letão-russo Gustav Klucis para o departamento de propaganda do Partido Comunista Russo.
Embora se trate de uma instalação escultórica não narrativa, a peça incorpora estórias e uma dimensão historicizada. Estas são representadas por fragmentos «encontrados» – não apenas os filmes, mas também reproduções de selos impressos em 1979 para celebrar o quarto aniversário da independência de Moçambique e diversos documentos relativos a filmagens comemorativas e a transmissões televisivas. E há a estória e a história implícitas nas formas arquitetónicas reconstituídas: a estrutura de madeira transposta e transformada, como ideologia, arquitetura social e arte revolucionária.
A execução artística de um idealismo igualitário eufórico em ambos os contextos recorda também as realidades que se seguiriam – a persistência de desigualdades, o entrincheiramento de posições, o conflito armado, a censura e, no caso do artista construtivista letão-russo ao serviço do aparelho de propaganda soviético, o encarceramento e a execução durante as purgas estalinistas. A forma arquitetónica, aparentemente benigna ou pretendendo-se até beneficente, não é inocente, estando pelo contrário implicada nos conflitos coloniais e pós-coloniais, à deriva por entre as suas consequências devastadoras, feita dos escombros do seu imaginário criativo.
Os modelos da série Para Moçambique de Ângela Ferreira apresentam, do mesmo modo, a história à deriva. No entanto, as suas características abstrações escultóricas modulares, apesar de um carácter marcadamente desconstrutivista, não são destroços de naufrágios. São elegantemente desconcertantes e perturbadoras, mas não elegíacas ou desorientadoras. Não obstante a sua contundência política e a incisividade da sua crítica social, o trabalho de Ângela Ferreira não se revela pessimista ou escarninho. Em vez disso, recupera, reconstrói, relocaliza e reenquadra discursos culturais do passado, reorientando (re)construtivamente o presente.
A artista trabalha intencionalmente com materiais de construção comuns, em muitos casos oriundos dos seus pontos geoculturais de referência – como o contraplacado de um estaleiro de obras da periferia da Cidade do Cabo, ou Maputo, ou Lisboa.
O seu trabalho é marcado por essas ética e estética modernistas definidas por formalistas russos como Shklovsky e Tynianov, as quais funcionam no sentido de uma «desfamiliarização» e de uma estilização que nos permite ver o que já não conseguíamos ver, sentir o que já não sabíamos sentir, confrontar o que tínhamos esquecido, um processo de reanimação operado mediante o estranhamento da vida e da literatura, ou da arte. Em vez de nos fazer tropeçar numa pedra para a tornar novamente pétrea, Ângela Ferreira dá-nos a ver as propriedades formais e materiais do contraplacado que utiliza numa elegante forma escultórica modular, bem como cantos e danças projetados sem som, movendo-se ao ritmo da sua estrutura de madeira elementar.
A obra compósita de Ângela Ferreira, esquivando-se a quaisquer pronunciamentos definitivos, implica essa atenção crítica e criativa que Bakhtin correlaciona com heteroglossia, polifonia, dialogismo, uma consciência duplicada e dividida que atravessa espaços definidos por diferentes géneros discursivos socioideológicos e formais, literais e literários, artistícos e arquiteturais). A obra de Ângela Ferreira não se limita a pôr em diálogo o discurso e o canto, a imagem e o imaginário cultural procedentes de contextos culturais díspares. A conjugação destes diversos fragmentos «estoriados» e «historiados» reflete pretextos e contextos políticos, bem como o significado de cada um destes tal como considerado a partir do ponto de vista criticamente apurado que Bakhtin associa às concomitantes «interioridade» e «exterioridade» do crítico e ao trabalho transposto para o «Grande Tempo».[1]
Sentimo-nos atraídos pelos passos de dança dos trabalhadores moçambicanos e pela canção de Dylan, pela épica que os selos repetidamente narram, pelas ondas de papel de jornal emoldurado – e, porém, não deixamos de manter a nossa distância estética e histórica, reflexivamente cientes do reposicionamento desta plataforma de propaganda numa galeria de arte, responsáveis a esta história política, e a esta história da arte, que vemos assim reenquadradas neste contexto específico. Se aplicarmos às artes visuais as afirmações de Deleuze e Guattari relativas ao significado político das «múltiplas desterritorializações da linguagem» inerentes a todas as «literaturas menores»[2], compreenderemos melhor o modo como Ângela Ferreira contesta as reivindicações históricas hegemónicas por meio do deslocamento, da digressão e da incorporação de diversos discursos marginais. Esta contestação não é apenas de ordem política, mas também estética, não é apenas uma questão de história revisionista, mas também de arte visionária.
Não obstante a clareza e a certeza sugeridas pela sua notável simplicidade estrutural, a obra de Ângela Ferreira está repleta de vestígios da mão da artista em ação e gratifica uma análise cuidadosa com base num novo entendimento dos materiais e dos métodos. Os documentos incluídos nos vários modelos da série Para Moçambique põem em destaque o processo da criação de filmes, incorporando textos impressos e notas escritas à mão. Não encontramos rasuras nos desenhos antigos ou recentes de Ângela Ferreira integrados na Coleção Moderna, nos quais as quadrículas a lápis e as linhas preliminares, traçadas e retraçadas, permanecem visíveis sob o giz pastel. Nos desenhos sem título que realizou durante o seu primeiro período de trabalho artístico em Lisboa, em 1989, ligada à Ar.Co. e apoiada por uma bolsa da Fundação Gulbenkian, linhas negras subjazem e contornam superfícies a giz branco, cinzento, azul, ocre e cor de umbra. As dimensões formais dos objetos são definidas por belos planos cromáticos criados por linhas a giz que alternadamente revelam e ocultam a mão da artista.
Um negro denso, um azul-acinzentado escuro e um tom carregado de umbra preenchem o plano, enquanto tonalidades mais claras de ocre, umbra, cinzento e branco riscam superfícies mais abertas, permitindo-nos decifrar os gestos da artista e vislumbrar através dos interstícios a base de papel Fabriano. Os planos densos e os riscos abertos não dissimulam as linhas preliminares e procuradoras a negro que atravessam as manchas de cor, ultrapassando-as e contornando-as. A dinâmica funcional dos desenhos de Ângela Ferreira assenta em linhas que procuram a forma e arranham as superfícies, confrontando os espectadores com um processo recuperado, mais do que de encoberto. As esculturas da sua fase inicial integradas na Coleção Moderna funcionam de modo similar. Contemplada de uma certa distância, Escultura III parece ser uma elegante forma acabada. Porém, assim que nos aproximamos da superfície, distinguimos as linhas orientadoras traçadas a lápis na estrutura de madeira, visíveis tanto no lado superior como no lado inferior da peça.
Furos escareados esburacam o contraplacado; os parafusos apresentam-se oxidados. O tempo está implícito nas referências modernistas da obra, mas também inscrito nela através dos sinais da sua construção e exposição. De acordo com as instruções da artista, os livros incorporados nas instalações da série Dupla Face devem ser manuseados – assim sendo, acabaram, de facto, por se desintegrar.
Numa conversa recente, Ângela Ferreira insistiu que o aspeto fundamental das suas instalações é um entendimento interativo do tempo, do lugar e do processo, exprimindo alguma perplexidade perante a consternação dos curadores e a consequente indecisão quanto à melhor forma de resolver o problema dos livros: substituí-los, mantê-los tal como estão mas passando a proibir o seu manuseio, ou deixar simplesmente que se desfaçam em resultado da ação dos sucessivos espectadores.
A artista assinala os elementos indivisíveis de Para Moçambique [Modelo n.o 3…]. Interativas ou não, as instalações de Ângela Ferreira convidam o espectador a estabelecer com elas um envolvimento não convencional. Os esboços e as fotografias documentais da artista não são meros estudos preparatórios para peças escultóricas acabadas. Constituem, no seu conjunto, uma obra acabada de carácter intencionalmente inacabado, um diálogo por concluir. Ângela Ferreira convida-nos a embarcar com ela, a colaborar no seu trabalho de resgate e procura.
[1] Mikhail Bakhtin, Speech Genres and Other Late Essays [Эстетика словесного творчества (Estetika slovesnogo tvorchestva)]. Ed. C. Emerson e M. Holquist. Trad. V. W. McGee. Austin: University of Texas Press, 1978. Cf. The Dialogic Imagination, 1981.
[2] Deleuze, Gilles e Félix Guattari. Pour une littérature mineure. Paris: Éditions de Minuit, 1975. [Kafka: Towards a Minor Literature. Trad. Dana Polan. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1986.]