Marta Mata
“Algumas pessoas não têm noção do quão boa a música erudita consegue ser”
Apanhámo-la numa visita curta a Lisboa, prestes a regressar aos Países Baixos, onde está a frequentar o Mestrado em Piano no Conservatorium van Amsterdam, com a ajuda da bolsa Gulbenkian para Formação em Artes no Estrangeiro. Descontraída, Marta Mata fala da sua relação com o piano com algum distanciamento, realismo e muita humildade.
Diz-nos que teve a sorte de conhecer bons professores ao longo do seu percurso, que a incentivaram para continuar a aprender – Luís Pinto, Paulo Oliveira, Jill Lawson, Naum Grubert, Frank van de Laar –, refere várias vezes a importância da saúde mental para o bem-estar pessoal e profissional e acredita que a música clássica deveria ser mais acessível ao público em geral. Não pensa no piano como uma “relação eterna” porque “é muita pressão”, mas para já não se vê a fazer outra coisa, nem pensa regressar a Portugal nos próximos tempos. Descubra o que mais tem a dizer esta bolseira Gulbenkian.
Fala-me um pouco do teu percurso. De onde vem a paixão pelo piano?
A escolha pelo piano foi um bocado acidental. O meu pai tinha um piano daqueles antigos em casa e eu gostava de brincar, aliás, bater naquilo, como se fosse um instrumento de percussão. Fui fazer aulas para a Casa do Povo e odiei; o meu pai pagou um ano inteiro e desisti passados dois meses. Um ano depois, quis experimentar outra vez e, como era mesmo opção minha, a coisa correu bem.
Depois fui para o Conservatório de Palmela, gostei e continuei no piano porque pensei “se não correr bem, posso fazer outras coisas mais tarde”. Nunca foi uma relação muito séria, de todo. Até agora estou a gostar muito, não me imagino com outra coisa, mas nunca se sabe o futuro.
E agora estás a fazer o mestrado em Amesterdão. Como está a correr a experiência?
O primeiro ano que passei em Amesterdão foi a fazer um curso preparatório para mestrado, o que foi muito bom porque demoro sempre a adaptar-me à cultura, à pressão, tenho sempre muitos bichinhos na cabeça. Foi um ano de descoberta, dei um pulo de que não estava à espera, graças também aos professores e aos colegas. O nível das aulas é muito bom e é como é que se fosse uma segunda família, apoiam-se muito uns aos outros. Cheguei a ir a um concurso onde alguns colegas também participaram e estava nervosa a pensar “será que isto vai arruinar relações?”. Não, de todo; foi o oposto. Se calhar aqui, como há poucas vagas para conseguir alguma estabilidade financeira enquanto músico ou artista, há esse nervosinho por trás que motiva as pessoas a estar mais em competição do que em colaboração, quando, na realidade, na colaboração ganha-se tanto mais.
Mas está a ser bastante bom. Se quiseres, tens todas as oportunidades. Mesmo que possas começar com um budget muito pequeno, dão-te sempre a possibilidade de começar a ser profissional.
Então foi só quando te mudaste para lá e começaste o mestrado que pensaste “agora é mesmo nisto que vou trabalhar”?
Acho que sim. Pelo menos com um compromisso mais maduro, em que optar é renunciar: se quero ser isto, tenho de dizer não àquilo. Já o fazia, mas lá ganhou outra dimensão porque parece que o trabalho é muito mais respeitado.
Se não fosses pianista, o que te verias a fazer? Tens hobbies ou outros interesses?
Gosto muito de ler, mas não me vejo escritora, nem perto. Aliás, já a falar sou uma catástrofe. [risos] Também nunca gostei muito da escola, para ser honesta. Gosto de ter professores só para esclarecer dúvidas, gostava de estudar ao meu ritmo. Lembro-me que adorava Matemática, mas nunca obedecia à professora na execução dos exercícios: se estavam a fazer uma coisa, eu fazia outra. Gostava de Matemática porque para mim era um jogo para resolver, um sudoku mais difícil. Se calhar seria por aí. Não sei decorar coisas, sou terrível, no dia a seguir já não me lembro de nada.
Mas agora também tens de decorar partituras…
Sim, e isso para mim, no que toca a nervos, é a parte mais tramada. Tento não me focar nas notas, porque sei que depois a minha cabeça vai pregar partidas. A minha memória é definitivamente o meu ponto fraco.
Portanto é mais fácil memorizares os movimentos, a memória física?
Sim, ou seja, tocar sem pensar. Claro que isso não é nada seguro, e tento cada vez mais ter noção do que é que estou a tocar e olho para a partitura. Mas há momentos em que, com os nervos, isso vai tudo ao lado, então em contextos de performance tento desligar ao máximo e estar o mais calma e confiante possível. E a verdade é que uma coisa que vamos percebendo ao ouvir peças gravadas ao vivo de pianistas que adoramos é que toda a gente tem falhas de memória. O que é mais importante é a maneira como improvisas e consegues sair daí. Acho que os próprios compositores não nos vão esfaquear (figurativamente) só por causa disso.
O que te vês a fazer no futuro? Onde gostavas de estar daqui a 10 anos?
É uma boa questão. Eu própria também estou ainda a experimentar coisas, a tentar sair da zona de conforto. Antes tinha muito medo de iniciar projetos, porque pensava que ainda não era boa o suficiente. A Bolsa da Gulbenkian motivou-me muito, do género: “se ganhei a bolsa, se calhar não sou assim tão terrível” [risos].
Daqui a 10 anos sei que dar aulas vai ser uma realidade, porque gosto e traz alguma estabilidade emocional e financeira. Gostava de, pelo menos, conseguir manter alguma regularidade de projetos de música de câmara, que não implicam tanta pressão como projetos a solo e fazem-me bem pessoal e musicalmente. Também cada vez estou mais motivada a perguntar-me que tipo de público é que quero ter, além do público mais formal. Há muitas pessoas que não vão a um concerto de música erudita por falta de hábito ou porque acham que não gostam, e gostava de encontrar alguma forma de ser mais acessível a esse público.
Quando eras miúda ouvias muita música clássica?
Sim! Uma das minhas grandes referências era Martha Argerich, com o concerto de Schumann. O meu pai tinha daqueles CDS-coletâneas, best of Tchaikovsky, best of Chopin… era isso e Beatles [risos]. Lembro-me de ouvir vezes sem conta na escola, na Margem Sul, e os meus colegas perguntavam “porque é que tens um MP3 cheio de música de pessoas que já morreram?”. Acho que algumas pessoas não têm noção do quão boa a música erudita consegue ser.
Já tinhas alguma relação com a Fundação antes de ganhares a bolsa?
Não, só vinha aqui ver concertos. Às vezes comprava aquelas temporadas de piano, quando via que tinha dinheiro e que conseguia mais ou menos ir às datas. Houve só uma vez que vim tocar cá com um grupo de música de câmara, com o professor Paulo Pacheco. A minha irmã chegou também a ser bolseira, mas não é música, estudou dança contemporânea.
Que importância teve esta bolsa para ti?
Sempre tive pais muito presentes e que se esforçaram para eu não ter de trabalhar, mas é muito bom agora não ter de lhes pedir ajuda e não ter de procurar um trabalho. Consigo ter um espaço para não fazer nada e ponderar sobre o que estou a fazer. Acho que é importante para quem segue música, não só praticar um instrumento, mas também saber não fazer nada; não no sentido de ser preguiçoso e estar ao telemóvel, mas perceber que no tédio há muita criatividade. Não entrar em modo piloto. Às vezes ouço os meus amigos a tocar e sinto: OK, as notas estão todas lá, mas precisas de perceber o que é que queres fazer criativamente com essa peça. Isso vem de um espaço zen, de só estar focada nisso, e é essa possibilidade que a bolsa dá.
No fundo é encontrares a tua voz no instrumento, não é? Que deve ser um processo difícil.
Sim, e é uma pressão enorme também, porque as peças agora são todas muito conhecidas. E existe aquela coisa de “não estás a tocar correto”; mas o que é o correto? É uma linha muito ténue na realidade, mas é um desafio pelo qual acho que vale a pena lutar.
O que é que ouves mais no que toca a críticas, quando não estás a fazer um bom trabalho?
Há uma crítica que ouvia muito quando comecei a estar lá [em Amesterdão]. Ter o espaço para fazer performance, ou seja, habituares-te a tocar para os outros, é uma prática. No início, quando não estás habituada, a tua maneira de tocar é completamente diferente de quando estás a estudar, o que é muito irónico e frustrante, porque estudas horas e horas e depois vais para o palco e tocas de maneira completamente diferente – e não a melhor. Ficas muito mais tensa, tocas mais para cima, em vez do peso todo ir para baixo e ser um som mais natural.
É engraçado porque, de facto, tocar na sala de ensaio é só uma parte do trabalho. Há todo um processo psicológico e de saúde física e mental que acho que só começou a ganhar algum campo agora, também com a moda (que acho que é boa) da saúde mental. Tocar em palco requer não só estudo, mas também preparação psicológica e muita prática em palco.
Histórias de Bolseiros
Desde 1955, a Fundação Gulbenkian apoiou mais de 30 mil pessoas de todas as áreas do saber, em Portugal e em mais de 100 países. Conheça as suas histórias.