Joel Moreira sobre o novo CAM: «Sinto que tem muito potencial para se tornar um “farol”»
O que é que te fez querer participar no Conselho? E quais eram as tuas expectativas quando te candidataste?
Em primeiro lugar, o que me fez querer participar no Conselho foi uma oportunidade de poder intervir e participar na construção daquilo que é um centro da arte, neste caso o Centro de Arte Moderna, e tudo o que eu acredito que ele deve representar, quem deve representar e como deve representar.
E qual era a tua expectativa em relação ao que seria o trabalho do Conselho?
Pelo que eu fui percebendo, o CAM está também num processo de reconstrução de identidade. Nesse aspeto, as minhas expectativas são muito positivas, porque eu sinto que o Conselho pode fazer com que o Centro de Arte chegue a toda a gente, atravessando todas as classes sociais, todas as bolhas, e verdadeiramente democratizá-lo. Acho que é a grande expectativa.
Na tua candidatura falas muito de “atravessar as fronteiras”. O que é que achas que são para as instituições culturais e para o público as maiores fronteiras? Ou seja, quais são as maiores barreiras a serem ultrapassadas?
Em primeiro lugar, eu diria que as condições socioeconómicas. Por exemplo, a cultura deste nível não chega aos bairros sociais, dificilmente chega às periferias. E não acredito que seja só culpa das instituições porque, de certa maneira, é preciso um certo grau de instrução, de literacia e de inserção social num contexto global para que essas minorias – não minorias socioeconómicas, mas minorias étnicas ou minorias culturais – consigam entrar dentro da instituição.
O que dirias que é a tua relação com as instituições culturais?
É interessante, porque eu cresci num bairro social, apesar de ter o privilégio de ter conseguido sair relativamente cedo. Quando frequentava este tipo de instituições sentia-me um bocado perdido, não sentia que era um sítio para eu estar. Talvez por não encontrar pares, talvez por as conversas e os ambientes serem totalmente diferentes dos meus ciclos familiares e sociais. Tive o privilégio e a sorte de ter vindo à Fundação Gulbenkian nas várias fases do meu crescimento, mas não me sentia confortável na instituição. E depois chegava aos meus pares e não conseguia transmitir as missões que ia captando e as ideias que ia apanhando seja da Gulbenkian, seja do teatro… só mesmo com o cinema é que se consegue abranger toda a gente, mas a esse tipo de instituições eu ia realmente dividido entre estas duas realidades. Por um lado, um sítio em que me sentia privilegiado por poder pertencer, um sítio em que entram “as elites”, onde há muito elitismo, por outro, um sítio que é o oposto, e o facto de eu não conseguir fazer a ponte entre essas realidades. Há uma certa dificuldade em conseguir caminhar nos dois caminhos, lado a lado.
Mais especificamente, antes de estares no projeto, qual era a tua relação com o Centro de Arte Moderna ou com a Fundação Gulbenkian em geral?
O Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian era dos sítios que eu menos frequentava. A Gulbenkian conhecia bastante. Para além do Jardim, e de todas as atividades que iam fazendo, era muito frequentador do Museu, especialmente aos domingos quando é grátis. Vinha sempre ver as exposições temporárias e até é um sítio a que eu gosto de trazer pessoas. Mesmo o Museu, especialmente nos dias que são grátis, é um espaço interessante para se conversar sobre o que vamos vendo.
Voltando ao Conselho Consultivo. Como o nome indica, o Conselho é dedicado a pensar as audiências jovens. No que é que achas que difere a audiência jovem das restantes? O que é que, na tua opinião, faz a diferença entre este tipo de público e todos os outros?
Vou falar pelos jovens, que é quem me sinto mais confortável a representar: a questão da literacia necessária para se andar nestes meios artísticos, nomeadamente a arte conceptual. Um exemplo muito específico: é difícil andar-se por uma exposição de arte contemporânea conceptual com a mesma facilidade como se vai ao cinema ver um filme muito comercial ou quando se consomem produtos mais comerciais. Em primeiro lugar, sinto que há uma barreira bastante grande neste aspeto.
No exemplo específico de uma exposição com arte mais conceptual, que tipo de barreiras vês? O que é que identificas especificamente como parte da experiência que sentes que é necessário refletir?
Por exemplo, uma exposição de arte conceptual sem textos de parede. Acho que, às vezes, dá-se por garantido que um certo público chega aqui, retira a mensagem que tem que retirar, acha interessante e segue a sua vida artística e intelectual. E, de facto, mesmo pessoas que vêm à Fundação pela primeira vez, com o intuito de conhecer, chegam e têm um choque muito grande. A maioria das pessoas que eu conheço sai deste sítio completamente confusa, desinteressada, e isso acaba por não ser benéfico para ninguém. Sinto que há um certo pressuposto de que já existe literacia e conhecimento específico para poder apreciar certo tipo de arte.
Fazendo um exercício especulativo, o que seria para ti uma instituição que respondesse totalmente às necessidades dos jovens? Ou seja, como exercício de imaginação, o que é para ti uma instituição utópica?
Em primeiro lugar, em termos de acessibilidade financeira seria, não necessariamente grátis para toda a gente, mas com um género de tabela progressiva. Isso seria excelente. Como é que isso se iria fazer? Parece-me um processo demasiado complicado, não sei bem, mas parece-me utópico.
Em segundo lugar, juntar às várias coleções e às várias curadorias da Gulbenkian, temas que também refletissem problemáticas das realidades nas ruas.
Outra maneira era conciliar os grandes gostos, as grandes tendências, com esta vertente mais intelectual, mesmo humanitária, da Gulbenkian. Eu nem acompanho futebol, mas imaginemos, por exemplo, uma grande competição passar aqui. Seria uma forma de trazer gente que provavelmente não viria tão cedo e que estaria aqui a aproveitar os espaços. Eu sei que o futebol não é uma coisa que propriamente atraia a Gulbenkian, mas pode ser um convite para quem para aqui para ver um jogo e no mesmo dia percebe o que é que se passa aqui, como é que funciona. Se calhar vai ter curiosidade, achar o espaço muito agradável. Eu dou o exemplo dum jogo de futebol, mas podia ser uma feira de rua com outras instituições, como os Anjos 70. Seria interessante relacionarem-se várias tendências com a Gulbenkian para se poder passar a palavra e chamar mais pessoas.
No fundo, usar um tema mais generalista para motivar as pessoas a aparecer, usando um contexto que conheçam.
Sim, e para muitos seria o primeiro contacto.
Voltando ao Conselho Consultivo, o que é que o teu percurso académico e o teu próprio contexto pessoal podem acrescentar a este projeto?
Em primeiro lugar, sinto-me algo herdeiro da cultura das minhas raízes em dois espaços diferentes: o espaço timorense, uma das menores minorias portuguesas, e o espaço cabo-verdiano. Em segundo lugar, poder trazer as periferias, os bairros sociais e pessoas que nunca tiveram acesso a este tipo de aventuras intelectuais.
Em termos da minha formação, estudei na Faculdade de Belas Artes. Sinto-me privilegiado, mas eu vim cá muitas vezes e bati com a cabeça na parede outras tantas vezes em vários projetos. De facto, consegui desenvolver uma certa sensibilidade estética e artística, mas precisamente por ainda estar a desenvolver esse caminho sinto que tenho alguma facilidade em perceber onde é que se cria mais fricção com estes espaços. Ainda no espaço académico, por agora estar a estudar história, principalmente moderna e contemporânea, e a estudar a formação dos museus, ou a formação deste tipo de instituições, também trago motivação e sensibilidade política. Interessam-me as manifestações sociais e a perceção da sociedade sobre este tipo de instituições, e o papel que deveriam ter.
Entretanto, já tiveste duas sessões. Quais são as tuas primeiras impressões do grupo?
Acho um corpo muito interessante: pessoas de muitas áreas diferentes, todas elas com conhecimentos académicos, sensibilidades e inteligências emocionais incríveis. Há abertura e eu sinto que todas as pessoas se dedicam e esforçam por ser transparentes e partilharem mesmo aquilo que querem partilhar. Acho que isto gerou um espaço de conforto, um espaço aberto onde podemos conversar à vontade e fora da caixa, sem restrições nenhumas. Só poder estar num espaço assim, para mim já é a derradeira recompensa. E acho que tudo o resto vão ser só frutos.
Nestas duas sessões o que é que já tiveram a oportunidade de fazer, aprender e discutir?
Sendo que a primeira foi uma introdução para nos conhecermos um bocadinho melhor, na segunda fomos visitar a obra para termos alguma perceção espacial do que é que vai ser o novo CAM. Voltámos para debater ideias e comparar com outras instituições em que já estivemos: o que é que nos atrai nessas mesmas instituições? O que é que nos atrai na Gulbenkian? Ver o que nos atrai nas outras e que não acontece na Gulbenkian. E, claro, também estivemos a explorar um lado mais pessoal da nossa ligação com a arte, nomeadamente as nossas primeiras memórias com a arte e o seu impacto a todos os prazos.
Mencionaste que foste visitar as obras do CAM. O que achaste do novo edifício?
Sinto que tem muito potencial para se tornar um “farol” no que são as ideias do CAM e de como vai ser a nova identidade. Adorei a ideia da transparência, de ao entrarmos no parque conseguirmos olhar para dentro do edifício. Estou muito curioso para saber como é que se vai desenvolver este projeto Engawa, por ser um espaço nem privado nem público – um espaço de convívio em todas as esferas. Apesar de ainda estar só na fase da obra, já fica esta ideia de que é um grande investimento para a identidade que se quer construir. Eu acho incrível.
Tu ligas muito o papel de uma instituição cultural a uma espécie de ativismo cívico, e já mencionaste várias vezes a questão de tratar temas fraturantes da sociedade. Que tipo de temas é que gostavas que o CAM trabalhasse?
Em primeiro lugar, na minha opinião que pode ser controversa ou não, uma instituição, nomeadamente cultural, nunca pode ser apolítica. No sentido em que tem que ter uma mensagem e tendo uma mensagem já é política. Muitas vezes quando se é neutro – e eu não acredito na neutralidade – a não-mensagem é uma mensagem também. Por isso, mais vale afirmarmos aquilo que acreditamos do que deixar arrastar.
Em segundo lugar, a inclusão: criar um espaço mais homogéneo culturalmente. Isto no sentido em que Lisboa – e Portugal, mas essencialmente Lisboa – é um sítio onde se vê muita multiculturalidade mas não há mistura, não se transforma em interculturalidade. Eu acho que esta devia ser uma das grandes bandeiras.
Destaco também o estímulo ao debate sobre saúde mental. Na minha opinião vivemos numa sociedade onde é cada vez mais degradante esta situação individual e coletiva que ainda sinto que é muito ignorada, apesar de estarem-se agora a levantar as primeiras bandeiras nessa luta.
E por último, mas acho que é a base disto tudo, a fomentação do pensamento crítico.
Lembras-te de algum exemplo de uma instituição ou uma ação ou algo que tenha refletido bem esse tipo de problemas?
Sim. A primeira que me vem à cabeça é o Coletivo Fumaça que foca-se mais na área do jornalismo. Fizeram uma série de podcasts, chamada “O Desassossego”, que aborda especificamente a saúde mental, com exemplos de pessoas reais mais diversas possível, para nos mostrar que este problema pode estar em qualquer lado. E é um problema que não conhece barreiras socioeconómicas.
Também referes muitas vezes a questão das comunidades, da construção de comunidades e da sua promoção. Como é que um centro de arte, nomeadamente este, pode ajudar a construir comunidades?
Primeiro, expondo as próprias culturas com curadorias “populares” dessas mesmas comunidades. Por exemplo, temos várias comunidades sul-asiáticas em Lisboa. Porque não, através de um intermediário, fazer um estudo do terreno e convidar as pessoas para poderem divulgar-se a si próprias e a sua maneira de ver, em contrapartida ao que constantemente vemos: pessoas que não fazem parte das comunidades a divulgarem a ideia que elas constroem dessas comunidades. Acho que, com curadorias feitas pelas próprias comunidades, cria-se um espaço de conversa e um espaço de partilha.
Tu pertencias a um projeto que é o “Passa a Palavra”.
Sim.
As dinâmicas desse projeto têm, de alguma forma, algum reflexo em algo que o CAM também possa fazer? Vês alguma ligação entre esse tipo de trabalho e o trabalho do CAM?
Totalmente, especialmente no que é fomentação do pensamento crítico.
O “Passa a Palavra” começou por querer ser um espaço de debates de temas fraturantes, um projeto muito ambicioso. Reunia uns quantos alunos que tinham vontade de divulgar e debater estes temas tabus. A participação não foi tão grande como esperávamos. Não sei se foi pela escala de ação, que certamente não é a mesma que o CAM poderia ter. Criando um espaço onde todos os alunos possam trocar as suas dúvidas, e aproveitando essas dúvidas para contrapor com ainda mais dúvidas, acabamos por questionar tudo na verdade.
Eu acho que um projeto deste nível poderia passar por uma nova escala de atuação proporcionada pelo CAM. Isto seria não só para alguns, mas para toda a gente que queira mesmo criar uma plataforma. Passar um projeto deste género para o mundo da Gulbenkian poderia significar criar um espaço de moderação para que os debates fossem feitos numa espécie de assembleias públicas e livres para toda a gente – verdadeiro significado de República.
Pediram-vos para selecionarem duas obras da Coleção e tu selecionaste a Hora Mágica da Maria Benamor e A Serra da Mimi Fogt. Porque razão escolheste estas duas?
Primeiro, algum contexto: explicar que o catálogo do CAM é muito mais extenso do que eu estava à espera. Foi uma aventura.
Acabei por escolher duas obras que nunca tinha visto, de artistas que não conhecia. No meio de tudo, a Hora Mágica destacou-se para mim. Primeiro, sou atraído por tudo o que são géneros mais naturalistas, representações de natureza, e pareceu-me uma maneira muito inocente, no bom sentido, de tratar a pintura de maneira figurativa. A forma como representava os elementos fazia muito lembrar os géneros fauvistas, que é um dos meus estilos favoritos. E acho incrível esta maneira inocente, quase childish, de representar o meio. Achei que foi uma viagem à minha infância, a minha própria perceção do que eram as coisas.
A outra obra, A Serra, não sei se posso dizer que é tão figurativa. É um quadro muito hipnotizante. Trouxe vários tons de verde, vários movimentos que me fazem lembrar essas paisagens, esses espaços mais naturais. Não consigo bem fundamentá-la, mas senti que houve quase um amor à primeira vista quando estava a folhear o catálogo. Pensei: “Pronto, vai ser esta”.
Para terminar, quais são as tuas expectativas para a reabertura do CAM?
As minhas expectativas, aquilo que eu quero acreditar que seja o CAM… eu sinto que o CAM pode ser um sítio de diálogo, de partilha, um sítio onde as pessoas se sintam todas bem-vindas. Tal como aquelas histórias “porque eu não me sentia bem”, “porque não me via representado de maneira nenhuma e em lado nenhum”. Eu espero que seja este sítio intercultural onde todas as pessoas se sintam verdadeiramente confortáveis e à vontade para serem transparentes. Parece-me que é essa transparência, esse à-vontade, que vai levar a grande missão de levantar todas as bandeiras que eu mencionei há pouco. Porque se não houver esse conforto, acho que dificilmente as pessoas vão-se querer abrir para expor aquilo que realmente pensam.
Sugestões
Livro: Walden ou a Vida nos Bosques, de Henry David Thoreau; Tudo do amor, Bell Hooks; e O Principezinho, de Antoine de Saint-Exupéry.
Músicas: Survival e Babylon System, de Bob Marley; e KOKOROKO, dos KOKOROKO
Artistas: Mário Domingues e Diogo Gazella Carvalho
Filmes: A Princesa Mononoke, de Hayao Miyazaki; e Atlanta (série), de Donald Glover