João Flecha
Bolseiro Gulbenkian 2016 – Histórias de Impacto
Sou português com uma parte africana do coração. Em 1979, o meu pai, jornalista, foi trabalhar para a Guiné-Bissau. Eu tinha seis anos e fui também. A força da paisagem africana revelou-se muito cedo e chegou o momento em que o meu pai me ofereceu uma máquina fotográfica. Aquilo que seria apenas uma prenda para me entreter nas muitas horas que passava sozinho tornou-se o início de um caminho.
Os rolos da máquina eram enviados para Portugal, para revelar as fotografias que chegavam muito tempo depois ao meu destino. Eu recordo que era muito interessante para mim fazer histórias com aquelas fotografias e trago isso desde então, o encontrar histórias através de uma imagem, de um momento que fica gravado.
Regressei a Portugal com onze anos. Foi um período turbulento. Tive de lidar muito novo com limitações que não me tinham sido impostas na Guiné, a falta de espaço, o barulho, os semáforos, certos hábitos sociais, a forma como as pessoas se relacionavam. Isto condicionou-me a uma adolescência mais virada para mim próprio, à procura do meu lugar numa forma de viver completamente diferente. A única coisa que se manteve foi a fotografia, à qual me agarrei.
Sempre fiz fotografia analógica, não digital, porque sempre procurei reencontrar aquela história que eu tinha visto através da objetiva. As máquinas foram mudando, tal como as condições. Tirei cursos de revelação, fiz muitas fotografias a preto e branco, mas o facto de fazer fotografia analógica e de me deixar na espera sobre “o que será?” foi uma das coisas que mais me prendeu à fotografia. Desde criança.
Acabou por não ser esse o caminho profissional que escolhi, não sou fotógrafo profissional, mas trabalho com imagem, sou técnico de impressão. Em 1999, licenciei- me em design industrial na IADE – Faculdade de Design, Tecnologia e Comunicação e comecei logo a trabalhar como designer gráfico, um pouco afastado da área industrial.
O facto de o meu pai ter sido jornalista abriu-me para o mundo da impressão, porque naquela altura todos os jornais tinham a sua gráfica, tinham as suas rotativas e o chamado “poço das máquinas”, onde se fazia a atividade de impressão. Era um universo que me despertava muita curiosidade e muito fascínio, o que me levou a procurar técnicas de impressão analógica que acabei por articular com a minha atividade como designer gráfico. A serigrafia foi outra das áreas à qual me dediquei depois de terminar o curso e fui-me envolvendo com o Centro Português de Serigrafia (CPS).
Ao longo destes anos de muito trabalho e de muitos trabalhos, regressei ao IADE como professor. Tinha sempre muita vontade de levar os meus alunos ao CPS, que, além de ser incrível, é muito perto das instalações da faculdade. E houve um dia em que me perguntaram se, além de serigrafia, eu não queria fazer também gravura. Foi o meu mestre Humberto Marçal, também bolseiro da Gulbenkian, fundação para a qual trabalhou durante muitos anos no restauro de gravuras, e que ainda hoje trabalha no Centro Português de Serigrafia.
Comecei a trabalhar gravura com ele, entrei para o CPS como impressor de gravura e foi com o Mestre Marçal que aprendi a técnica da gravura. Noutro dia, ele diz-me: “João, eu já não tenho idade para ver essas coisas na internet, quando tiveres tempo, gostava que investigasses sobre uma técnica de gravura que se chama heliogravura”. Esta foi a faísca que me fez perceber o quanto o meu destino estava ligado à impressão gráfica, e à fotogravura em particular.
Decorria o ano de 2015 e eu era desafiado por esta fonte de conhecimento chamada Humberto Marçal. Na altura, heliogravura não me dizia nada, gravação pelo sol talvez. Tinha que pesquisar e dedicar-me ao que o meu mestre me tinha pedido. Rapidamente detetei o termo relacionado com a primeira técnica capaz de reter uma impressão fotográfica que, ao contrário dos papéis embebidos em cristais de prata da época, conseguia manter uma imagem estabilizada por mais tempo. O termo provinha dos métodos que, em meados do século XIX, se utilizavam nesta nova maravilha chamada fotografia: conseguia captar um momento e deixá-lo registado para a história.
No início da fotografia, várias técnicas foram desenvolvidas para passar a imagem para o papel. A heliogravura (ou fotogravura, como depois ficou conhecida) foi desenvolvida por pioneiros da fotografia como Nicéphore Niépce, em que uma imagem era reproduzida numa chapa metálica coberta de betume judaico, exposta ao sol e posteriormente acidulada, permitindo a reprodução em papel da imagem gravada. A técnica seguiu depois pelas mão de nomes como Henry Fox Talbot, chegando aos dias de hoje um pouco renegada, sendo porém, ainda, a técnica de impressão fotográfica que mais profundidade revela, graças à grande quantidade de tinta que é depositada no papel por meio da prensa de gravura que é utilizada na impressão.
Depois de toda a informação que recolhi, decidi que teria mesmo de aprender esta técnica. Não só fazia todo o sentido para o percurso profissional nas artes gráficas, como técnico de gravura artística, como para a minha vida pessoal, por ser um apaixonado da fotografia, desde os sete anos. No entanto, o facto de a fotogravura ser uma técnica extremamente complexa, e muito pouco disseminada, tornava a formação bastante difícil. Em todo o mundo, existiam na altura cerca de vinte impressores profissionais dedicados a esta técnica, e nenhum deles em Portugal.
Apesar de haver formação disponível mais perto, cedo identifiquei o Centro para a Impressão Contemporânea Trykkeriet, em Bergen, na Noruega, como um dos mais interessantes, tanto pela sua capacidade técnica como pela internacionalidade dos seus membros e artistas visitantes. Mas tendo em conta um tipo de formação tão específica, esta oportunidade acarretava custos bastante elevados, sobretudo num país com o nível de vida como a Noruega.
Decidi que teria de procurar fonte de financiamento adicional que pudesse proporcionar-me formação, bem como ajuda na estada. E a resposta estava muito perto. Depois de investigar soluções em bolsas e residências de artistas por toda a Europa, o enquadramento de uma Bolsa de Especialização Profissional em Artes Gráficas, financiada pela Fundação Gulbenkian, não foi de todo uma surpresa, porque a Fundação assume um papel incontornável no apoio à cultura no nosso país. Mas estava longe de imaginar que este apoio me iria calhar a mim.
Calhou, de facto, com um senão. Como normalmente as bolsas Gulbenkian são atribuídas por, pelo menos, doze meses e a minha especialização era de um mês, o valor que me foi atribuído não era suficiente e eu teria de trabalhar mais para ir para fora. Quando expliquei isto à Fundação, a força que me deram foi ainda mais longe do que alguma vez pensei: pediram-me que expusesse a minha situação e que submetesse à consideração superior a atribuição de uma verba extraordinária para viabilizar o curso. Desde o primeiro contacto, todas as questões e dúvidas foram tiradas, o que foi fundamental para a apresentação de um projeto detalhado e objetivo. O resto foi magia!
Em Outubro de 2016, cheguei a Bergen, na Noruega, onde fiquei um mês a aprender fotogravura a quatro cores com o mestre David Stordahl, numa experiência particularmente rica, tanto a nível profissional como pessoal. A minha viagem foi marcada por grandes contrastes. O frio de Outubro, que até era simpático segundo os noruegueses, e o calor das pessoas depois de despirem o grande casaco que lhes serve de “margem de manobra social”, como se fosse uma casca grossa, que para alguém vindo do temperado mediterrâneo os associa logo a um aspeto viking. Todos estes estereótipos foram caindo logo a partir do primeiro dia. Nem o inverno de Bergen, nem os noruegueses são assim tão frios.
Hoje, e muito fruto dessa bagagem técnica que a Bolsa me proporcionou, estou a coordenar o departamento de impressão gráfica na Universidade de Design IADE em Lisboa, com o intuito de implementar, entre outras técnicas de impressão, a fotogravura, para que o conhecimento que me foi proporcionado seja partilhado e para que num futuro próximo também Portugal seja um dos pontos onde esta técnica se possa praticar e ensinar.
Sinto que houve dois elementos fundamentais sem os quais não teria conseguido atingir os objetivos pretendidos e não estaria a fazer o que estou hoje a fazer: a determinação que tive em querer aprender uma técnica nova e distante e a bolsa que me foi disponibilizada pela Fundação Calouste Gulbenkian, sem a qual seria muito difícil conseguir os resultados que pretendia e ter a experiência que tive.
Histórias de Bolseiros
Desde 1955, a Fundação Gulbenkian apoiou mais de 30 mil pessoas de todas as áreas do saber, em Portugal e em mais de 100 países. Conheça as suas histórias.