Joana Cotrim

Bolseira Gulbenkian 2015 – Histórias de Impacto

A História de Impacto da bolseira que tem um pé em Portugal e outro no Brasil, seu país natal, vai da dança ao teatro. É na arte que se encontra.
13 fev 2023 7 min
Histórias de Bolseiros

Nasci no Brasil, no Rio de Janeiro, e vim morar para Lisboa quando tinha oito anos. Aos dez anos, já estava em contacto com a Fundação Calouste Gulbenkian, nos espetáculos que vinha ver de três em três meses como aluna da Escola de Dança do Conservatório Nacional.

 

Durante cinco anos, tudo o que implicava ir à Gulbenkian ver bailados, desde brincar nos jardins a correr nos corredores, era maravilhoso. Tão maravilhoso que a primeira vez que vi uma mulher nua em palco e que vi homens a fazer pontas foi mesmo na Gulbenkian. Até um cão enorme eu vi como “membro” do elenco. Ou seja, recolhi e guardei momentos verdadeiramente marcantes, sem saber o que aquilo significava, percebo hoje que tive ali o primeiro contato com a noção de contemporaneidade, que ainda me fazem sentir a Fundação como uma casa.

 

Quando se está ligada à arte desde pequena, ganha-se uma sensibilidade que nos acompanha ao longo da vida e é muito difícil largar. Eu não larguei mesmo. Os meus pais não são artistas, mas a minha mãe sempre foi atenta e espectadora assídua de vários espetáculos e de várias peças. Também o meu avô, Gastão da Cunha Ferreira, teve um peso cultural grande: fundou o Centro Nacional de Cultura e a Casa da Comédia. Muito do que sou, sou-o por herança familiar. No entanto, percebi, aos quinze anos, que o meu caminho profissional não passava pela dança. Fiz um desvio artístico para fazer o curso de Psicologia Clínica no ISPA – Instituto Superior de Psicologia Aplicada, mas rapidamente fui encontrar a minha vocação no teatro. Hoje, com um percurso marcado por várias peças autorais, reconheço que há uma tendência, nos temas que exploro, ligada a aspetos emocionais, sobre a condição e natureza humana, e percebo que isso deriva do meu gosto pela psicologia. Valeu bem o desvio!

 

No período inicial de formação em teatro, passei pela ACT – Escola de Atores, da Patrícia Vasconcelos, e era frequentadora praticamente semanal do antigo Teatro da Cornucópia, onde ia ver as peças do Luís Miguel Cintra. Ingressei na ESTC, Escola Superior de Teatro e Cinema, passei pela televisão, entrando em duas telenovelas. Pouco satisfeita com a experiência televisiva retomei a escola de teatro, ESTC. Era lá que me sentia bem e foi ali que me encontrei, realmente, como a atriz que queria vir a tornar-me.

 

No final do curso, tive a grande oportunidade de sair do ambiente de escola diretamente para o Teatro Nacional Dona Maria II, integrada no grupo dos seis melhores alunos do meu ano e onde fiquei três anos. Trabalhámos com o João Mota, com quem pude descobrir mais camadas da atriz que era, na liberdade que nos dava para criar as personagens. Sem nunca perder a linha mestre do que pretendia para cada cena, para cada personagem e para cada espetáculo, o João Mota dava-nos espaço, confiava na intuição dos atores e das atrizes. Foi uma nova escola, onde aprendi a lidar com o público, muitas vezes juvenil, de forma direta, próxima.

 

Quando ainda estava no Dona Maria II, fundei uma companhia de teatro com o Pedro Sousa Loureiro, Os Pato Bravo. Quando saí da ESTC, fiz a primeira criação a solo, My Beauty TV Project, que apresentei em vários lugares. Ou seja, havia em mim uma vontade grande de criar, fazer projetos, fazer acontecer. E chega o derradeiro ano de 2015, em que percebo, com consciência e consistência, que precisava de tempo, espaço e dinheiro para criar. Sentia essa urgência, sentia o sangue ferver. Por saber que o meu caminho teria de passar pela criação teatral, concorri às Bolsas de Aperfeiçoamento Artístico da Fundação Calouste Gulbenkian para poder ingressar na Royal Institute for Theatre Cinema and Sound (RITCS), em Bruxelas. Na altura, candidatei-me a duas escolas mas fiquei na RITCS e, no mesmo dia em que estava a fazer audições para entrar numa delas, estava também a fazer o preenchimento da candidatura on-line para a Bolsa Gulbenkian. O destino estava traçado: consegui a bolsa.

 

O trajeto artístico em Bruxelas, onde fiz o mestrado em encenação de teatro, foi determinante não só para o desenvolvimento de conteúdos artísticos mas também para o entendimento geral sobre como fazer uma peça de teatro do princípio ao fim. A abordagem implicava uma constante relação entre forças de produção, relação técnica, entendimento humano e aprofundamento artístico. O caminho fez-se com alguns desentendimentos, alguma ansiedade e alguma insegurança, sendo que uma das histórias que ainda me marca como encenadora passou-se lá, com uma atriz francesa. Ao dar umas notas dos ensaios ao fim do dia sobre o uso excessivo de braços, num diálogo que merecia contenção física, usei a palavra ‘vulgar’ e a atriz percecionou a palavra vulgar (vulgaire) como uma enorme ofensa, o que se traduziu num choro compulsivo, alegando falta de respeito da minha parte. Foi um momento que me obrigou a cuidar dos atores de forma muito individual, porque a mesma informação pode gerar diferentes efeitos nas diferentes pessoas e isso leva a uma elasticidade que se vai aprendendo com o tempo.

 

Tenho em mim a certeza de que, sem o apoio da Gulbenkian, dificilmente teria tido a possibilidade de estudar fora. E desta fase em que me encontro atualmente, em que vejo projetos meus em parceira com a Rita Morais e a Ana Sampaio e Maia a terem financiamento público e a circular pelo país, e fora do país, percebo o quanto a formação na RITCS me deu a maturidade profissional que me faltava. A possibilidade de imersão e aprofundamento artístico tornaram a aprendizagem rica e sem constrangimentos, o que se traduziu num posterior percurso sereno e focado. A Bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian permitiu-me um desenvolvimento artístico e pessoal de grande dedicação, de grande dimensão e em relação ao qual não tenho ponto de comparação.

 

Viveria tudo outra vez, da mesma forma e com a mesma intensidade, mas, se o meu exemplo puder servir a futuros bolseiros e bolseiras na área artística, talvez tivesse preparado melhor a partida para uma escola estrangeira e até ali desconhecida. Teria feito um balanço mais justo entre o que é que eu queria do curso e o que é que o curso tinha para me dar. Todos os percursos são diferentes e singulares, cada escola é uma escola, mas quanto mais soubermos e entendermos sobre os lugares para onde vamos, não retirando a espontaneidade e a flexibilidade da experiência, melhor será o partido que retiramos de cada lugar. Cresci como atriz, cresci como encenadora, cresci como artista. Mas, acima de tudo, cresci como pessoa e como mulher. Não esquecerei. E sou muito agradecida à Fundação pelo que me permitiu.

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Histórias de Bolseiros

Desde 1955, a Fundação Gulbenkian apoiou mais de 30 mil pessoas de todas as áreas do saber, em Portugal e em mais de 100 países. Conheça as suas histórias.

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