Jan Wierzba
Bolseiro Gulbenkian 2013
Nasci na Polónia e, com 4 anos, vim para Portugal. Os meus pais eram ambos músicos de alguma reputação, mãe violinista e pai clarinetista, tendo-lhe a ela aparecido a oportunidade para trabalhar na atual Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, na altura Régie Cooperativa Sinfonia.
Após a extinção das Orquestras da Radiodifusão Portuguesa, no final da década de 80, o maestro titular e a direção artística fizeram audições por toda a Europa. A minha mãe não concorreu na primeira audição, que teve lugar em Varsóvia, mas após insistência de colegas, concorreu na segunda e foi aceite para o naipe de primeiros violinos. Falamos do ano de 1989, uma altura de grande instabilidade política, económica e social no Leste Europeu, as célebres Revoluções de 1989. Os meus pais decidiram vir para Portugal, com a ideia de permanecer entre um a dois anos, assegurando melhores condições de vida, tendo o regresso sempre como perspetiva.
Portugal passou a ser casa para nós. Lembro-me das férias regularmente passadas na Polónia, e algum sentimento de pertença de todos nós ao lá voltarmos, mas o que era suposto servir de uma vírgula na nossa vida tornou-se o nosso lugar: a cidade do Porto. O meu pai entretanto entrara para o Conservatório de Música do Porto como professor de clarinete, a minha mãe mantinha-se na Orquestra como violinista e assim fomos ficando, ano após ano. E eu fui naturalmente “bebendo” das vivências dos meus pais e de toda a envolvência social da orquestra, tendo sido naturalmente um pouco moldado por estas circunstâncias.
Não soube cedo que seria músico e/ou maestro profissional. Na verdade, quase enveredei por um caminho ligado à Gestão Financeira, seguindo os passos do meu irmão. Frequentei o ensino regular, no ensino secundário escolhi o agrupamento de Economia, e, simultaneamente, estudava piano no Conservatório de Música do Porto. Foi uma adolescência de muito estudo, muita dedicação ao instrumento e, por consequência, de algum isolamento. No penúltimo ano do Conservatório, quis inclusivamente desistir, mas os meus pais na altura impuseram-se e não deixaram, naturalmente com razão, depois de tantos anos de dedicação.
Foi nessa altura que fui percebendo que o meu futuro seria ligado à música. Assumi o compromisso de fazer os exames nacionais com nível para ingressar na Faculdade de Economia, e decidi que iria concorrer à Escola Superior de Música no ano seguinte, tirando um ano somente para terminar o 8º Grau do Conservatório. A verdade é que esse ano foi importante, tanto para acalmar e focar, como para viver uma adolescência tardia e sentir um espoletar de uma vida social no meio de jovens músicos com os quais tinha tido pouco contacto, por falta de tempo.
A escolha do piano foi minha, sem influência dos meus pais. A verdade é que demonstrei uma aptidão para o instrumento, por muito que detestasse a vida solitária de um pianista. Por isso, apesar do quase ligeiro desvio para Economia, foi natural entrar na Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo (ESMAE), no Porto, para fazer a Licenciatura na variante de Piano.
Foi nesta altura, com esta decisão, que assumi comigo mesmo que o meu caminho profissional passaria pela música. A direção de orquestra ainda não era uma realidade, mas a semente foi sendo plantada ao longo dos muitos ensaios a que assisti da Orquestra do Porto, levado pela minha mãe, com quem mantinha sempre imensas conversas sobre os maestros, colegas, chefes e processos de ensaio. Eu tinha muita curiosidade em saber como se fazia funcionar este organismo composto por um grupo de pessoas tão diferentes umas das outras, com os seus problemas pessoais e interpessoais, e tantos instrumentos com as suas próprias particularidades. Tinha o “bichinho”, mas nem eu o sabia identificar bem, e não o partilhava com ninguém.
Até ao dia. A minha mãe lutou com um cancro durante alguns anos e, quando eu ainda estava na licenciatura, faleceu, em 2007. Cinco meses antes da sua morte, recebeu a visita de um amigo que morava na Austrália, antigo concertino da Orquestra do Porto. Eu estava a servir de cicerone e chauffeur, a conduzi-lo a ele, à esposa e à minha mãe, no meu carro.
Numa das viagens, ele referiu que já sabia que eu era pianista e que tinha algum “jeito” e perguntou o que pensava fazer da vida, ao que eu respondi espontaneamente que gostava de estudar fora de Portugal e, com a maior naturalidade, que gostava ainda de experimentar direção de orquestra. Saiu-me em público pela primeira vez e não foi muito refletido. A minha mãe dirigiu os seus olhos para mim, incrédula, quer por nunca ter percebido essa inclinação, quer pela inclinação propriamente dita. Ficando um silêncio incómodo no carro, o amigo da minha mãe ajudou a desbloquear, referindo que se, efetivamente, me queria aventurar nesse sentido, tinha de começar a aprender, começar a criar técnica o quanto antes, pois as orquestras não perdoavam a falta de técnica.
Após essa conversa, a minha mãe disponibilizou-se para me apresentar ao maestro titular da Orquestra Sinfónica do Porto, Marc Tardue, com quem comecei a ter aulas particulares e a dar os primeiros passos naquilo que viria a tornar-se uma grande parte da minha vida (penso frequentemente que tudo começou numa viagem de carro e pela mão de uma pessoa que veio de tão longe). O Marc deu-me três coisas importantíssimas: encorajamento, uma ótima primeira base técnica e a oportunidade de ser seu assistente numa produção da Carmen, bem como primeiras oportunidades para dirigir um grupo (coro e solistas).
Tenho noção que lhe devo imenso, pois foi quem me permitiu confirmar a paixão, com um momento prático. O meu primeiro concerto como maestro a dirigir uma orquestra foi o concerto final de uma masterclass com o inspirador Jean-Sebastien Béreau, outra personalidade que me incentivou imenso na fase inicial. A minha mãe entrou em coma no dia a seguir a este concerto, tendo falecido no dia a seguir a entrar em coma.
Naturalmente, isto carregou e carrega um certo peso simbólico para mim, porque ela sempre fez tudo para que eu descobrisse o que gosto e o que me apaixona. Tive um período de luto grande, seguido de um período de enorme frustração por não conseguir entrar em escolas superiores no estrangeiro para licenciaturas e/ou mestrados em direção de orquestra. Continuei a desenvolver-me, mantendo aulas particulares com Jean-Sebastien Béreau, mas não ser admitido em nenhuma das escolas que procurava abalou-me. Comecei a pensar em enveredar por outra via, desenvolvendo interesses na área da Psicologia da Música mas tornei a ter um momento muito imprevisível, numa noite de tertúlia, em que um grande amigo e percussionista me colocou na linha de novo, falando-me do Maestro Jean-Marc Burfin, da Academia Nacional Superior de Orquestra, incentivando-me a não desistir. No dia seguinte, era o último dia de inscrições. Em resumo, inscrevi-me, fiz as provas e fui admitido.
Entre 2010 e 2013, estudei na ANSO, sob a alçada do Professor Jean-Marc, com quem tive um entendimento muito feliz, tendo-se tornado numa das pessoas mais importantes na minha vida, e o único a quem chamo verdadeiramente de mestre, para além de ter ganhado um amigo para a vida. Foi um período profícuo, em que comecei a ter os meus primeiros convites profissionais como maestro, mas também duro, um período de crise financeira em Portugal, em que estudava e trabalhava ao mesmo tempo, para pagar os estudos.
Concluindo a licenciatura, candidatei-me ao mestrado em Direção na Royal Northern College of Music (RNCM), em Manchester, no qual fui aceite em primeiro lugar e no qual vim a estudar com Clark Rundel e Mark Heron. Foi nesta altura que o Serviço de Bolsas da Fundação Gulbenkian abriu a possibilidade de uma bolsa para Direção de Orquestra (anteriormente fora destinada somente a instrumentistas de orquestra), tendo eu, com alguma surpresa, sido agraciado com a bolsa, após o normal processo de candidatura.
Teria ido para Manchester mesmo sem o apoio do Serviço de Bolsas, mas duvido que tivesse terminado, não sei se aguentaria financeiramente o segundo ano, e tenho a certeza de que não teria sido possível fazer tantas atividades extracurriculares. A Fundação permitiu-me ser um estudante a tempo inteiro, sem outras preocupações que não fossem próprias de um estudante, ao contrário do que aconteceu quando estudei na ANSO em Lisboa. Além de apoio financeiro, sinto também que a Fundação e as pessoas que trabalhavam no Serviço de Bolsas foram sensíveis às fases que atravessava. Depois de concluir o mestrado, quis parar para trabalhar, para ganhar experiência profissional e não me foi levantada qualquer objeção, considerando a possibilidade de me vir apoiar posteriormente por mais um ano. Tive dois anos bastante nómadas, mas fundamentais no meu crescimento como maestro. Tive, em suma, a bolsa Gulbenkian entre 2013 e 2015 para o mestrado em Manchester e foi-me novamente concedida a continuidade da bolsa no ano letivo 2017/2018, para fazer uma muito conceituada especialização em Weimar chamada Konzertexamen.
Hoje, depois de já ter trabalhado com tanta gente e de ter morado em tantos lugares diferentes, sinto-me uma amálgama de influências e experiências, não conseguindo especificar momentos mais importantes do que outros. Recordo, sim, as frustrações e as pequenas derrotas ou desilusões como fontes de profunda aprendizagem, pois aos maestros é exigida perfeição, perfeição essa na qual cada vez menos acredito a nível ideológico, muito menos numa profissão em que se atinge o auge das capacidades muito tarde, e muito menos em Arte. Aos bolseiros e bolseiras, deixo o pensamento que a Fundação Calouste Gulbenkian me proporcionou: ter a liberdade de sermos quem somos porque, valendo a bolsa por si, só vale realmente por aquilo que fazemos com ela. Obrigado.
Histórias de Bolseiros
Desde 1955, a Fundação Gulbenkian apoiou mais de 30 mil pessoas de todas as áreas do saber, em Portugal e em mais de 100 países. Conheça as suas histórias.