Hicham Khalidi: «A crise climática só pode ser enfrentada a partir de uma multiplicidade de pontos de vista»
Quais são hoje as principais responsabilidades das instituições artísticas e culturais?
O “hoje” é muito importante porque é nisto que tenho vindo a trabalhar nos últimos cinco anos, quando assumi funções de diretor da Jan van Eyck Academie.
Na altura, vi-me confrontado com duas questões. Em primeiro lugar, perguntava-me se o contexto e as condições da prática artística eram tópicos suficientemente considerados na nossa prática. Quando falo do contexto – que é tudo – refiro-me ao que nos rodeia enquanto instituição ou enquanto profissionais, se pensarmos no estado do mundo atual. Quando se trata da crise climática ou de qualquer outra crise, é importante perceber se pensámos suficientemente sobre o contexto, ou se este foi sequer considerado de todo.
A outra questão estava ligada às condições – que tipo de condições permitem a prática artística? E em que medida são diferentes para cada pessoa? Nós organizamos uma residência artística e recebemos pessoas de muitas nacionalidades, de todo o mundo. Será que vêm todas em pé de igualdade? E como é que negociamos estes processos? Quando se trata das condições para a prática artística, como é que, no final de contas, um objeto de arte pode ser considerado estrangeiro? Por exemplo, será que equacionamos condições como as viagens, o transporte ou os materiais utilizados – todas as condições que influenciam a criação de um objeto e tornam a prática possível?
Portanto, isto foi em 2018, muito antes da viragem que levou as instituições a começar a pensar na ecologia e na crise ambiental como parte integrante das suas práticas artísticas e institucionais. Para mim, a promoção de práticas mais sustentáveis e justas era uma questão premente, pelo que colocámos este tema no centro de tudo o que fizemos e tentámos criar instrumentos que nos permitissem trabalhá-lo.
Questionámos também o que significa produzir hoje. É uma responsabilidade da parte das instituições, mas o que significa, em geral, produzir e como é que isso afeta as nossas vidas e as vidas de outras pessoas? Como é que as nossas vidas e as vidas das outras pessoas estão interligadas? De certo modo, um olhar ético sobre a prática em geral.
Mas, voltando ao contexto e às condições, estes têm tudo a ver com o estado do mundo em que nos encontramos, com a pressão que é exercida sobre as práticas e as instituições e, ao mesmo tempo, com a procura de soluções. Prevalecia o sentimento de que nos tornaríamos obsoletos se não fizéssemos nada, que perderíamos a batalha, perderíamos as nossas posições e as nossas reflexões.
Inicialmente, comecei por ser muito radical, queria lutar, trabalhar rapidamente e encontrar soluções, porém, com o passar do tempo, descobri que há um longo percurso a fazer e que é preciso abrandar e avançar passo a passo, fazendo o que é possível.
E fizemos muito, incluindo na última Bienal de Veneza com o que criei para o Pavilhão da Holanda; criámos coisas fantásticas que têm a ver com esta minha ideia, talvez com a nossa ideia, de como uma instituição pode estar presente num mundo em rápida mudança e que precisa de transformação e estruturas diferentes.
Relativamente à Jan van Eyck Academie, quais foram as principais transformações organizacionais nos últimos anos?
A principal transformação passou pela forma como comunicamos uns com os outros, a forma como nos vemos uns aos outros dentro de uma estrutura que anteriormente era vista como uma estrutura muito mais hierárquica: eu sou o diretor e eles são a equipa, eu chefio dizendo-lhes o que têm de fazer e assumindo toda a responsabilidade por isso e eles assumem toda a responsabilidade pelas coisas que têm de fazer, ou seja, existe uma espécie de separação de tarefas e de responsabilidades.
A principal coisa que mudámos foi este sentido de responsabilidade interligada. No início, foi bastante difícil porque as pessoas se opuseram a esta ideia de transformação. Temiam que levasse a uma instrumentalização da sua forma de trabalhar e de uma certa noção de autonomia dentro das artes, o que acaba por se refletir de diversas formas, incluindo numa neutralidade das instituições em relação a crises ou conflitos.
Mas, com altos e baixos, conseguimos chegar a bom porto relativamente a esta questão e aproximar as nossas posições, porque as pessoas compreenderam que os desafios que lhes estava a apresentar eram muito importantes e, quando a pandemia nos atingiu, essa urgência foi prontamente sentida por todos. Pensaram: «agora falam de condições de bem-estar e de cuidar», enquanto antes ninguém mencionava a palavra «cuidar». Isto transformou completamente a ideia de «cuidar» na organização, que de repente se tornou extremamente importante, porque tivemos de lidar não só com os problemas de saúde relacionados com o coronavírus, mas também com as questões de saúde mental decorrentes do facto de sermos confrontados com estes enormes problemas.
Sempre fui claro em relação a isto: que se tratava apenas do início e esta questão se desdobraria para âmbitos mais abrangentes. Há um desenho muito bonito onde se vê a crise da Covid como uma onda e as pessoas que estão à frente dela dizem «já acabou», mas, por trás dessa onda, há uma onda muito maior que se chama «alterações climáticas». Por conseguinte, se pensarmos em como funcionam as ondas, só podemos ver e agir sobre o que está à nossa frente. E é preciso muito mais esforço para olhar para além daquela onda, para olhar para lá desse muro.
Esforcei-me por conseguir a adesão de todos para que começássemos a trabalhar em áreas que anteriormente eram negligenciadas e alargássemos a residência na Jan van Eyck Academie a outras nacionalidades, o que nos permite agora receber pessoas de 31 países diferentes, principalmente do Sul global. Esta ideia de restituição e retribuição sempre esteve muito presente, porque a crise climática só pode ser enfrentada a partir das posições de muitos tipos diferentes de pessoas, a partir de uma multiplicidade de pontos de vista.
Esta multiplicidade de pontos de vista só pode ser alcançada quando se ultrapassam determinadas condições, que podem ser financeiras, geográficas, linguísticas, etc. Para isso, é necessário criar instrumentos, como a multiplicidade de línguas, que se tornou importante para nos afastarmos do inglês como padrão internacional, como única solução, e para compreendermos a língua também como um processo de não compreensão. Isto significa que podemos ter muitas culturas lado a lado que se podem entender de muitas formas diferentes, incluindo de forma não verbal, ou emocional.
Por isso, a língua foi uma componente importante, e a outra foi a necessidade de existirem espaços seguros onde nos pudéssemos reunir e falar uns com os outros sobre as diferenças. Pode existir indiferença, mas, se conseguirmos falar, podemos colocar-nos numa determinada posição. Assim, uma das questões mais difíceis com que nos deparámos foi: como juntar muitas regiões numa única região? Mais precisamente, na região de Maastricht, em Limburgo, nos Países Baixos, onde predomina uma comunidade branca muito católica? Como fazê-lo de modo a que as pessoas possam comunicar umas com as outras sem se sentirem atacadas ou violadas? Com espaços comuns, espaços de reflexão, espaços de trabalho, do individual ao coletivo, de miscigenação de práticas, e também a comida como prática e a integração de famílias com crianças.
Sentia que havia uma hierarquia no mundo da arte em que as condições de se ter ou não uma família eram um fator com influência nas possibilidades de sucesso. Quando queremos construir um mundo novo, devemos repensar como podemos reunir o maior número de modos de vida possível, permitindo que as pessoas deem o seu contributo, porque isso acrescenta diversidade. Mas é igualmente importante garantir que não sejam atacadas e que sintam que podem contribuir.
Portanto, temos a língua e a agregação. E a administração? Como é que nos gerimos a nós próprios? Quando queremos atenuar as hierarquias, é importante que a administração compreenda o que estamos a fazer, por isso é importante dialogar com o conselho de administração. Este era predominantemente constituído por indivíduos do sexo masculino e não apresentava muita diversidade, pelo que trabalhámos muito nesse aspeto, mas também é importante compreender por que razão o fizemos. Isso foi muito importante.
Atualmente, o conselho de administração é uma grande parte dos nossos processos, incluindo dos processos de governação e de diversificação. Conversamos sobre a Jan van Eyck Academie e sobre o que pretendemos realizar. Agora, os membros do conselho de administração estão sempre presentes e existe muito mais envolvimento da sua parte, para além da mera responsabilidade de constituírem o conselho de administração e de terem de estar a par das estruturas da academia.
Depois, há coisas muito concretas como, por exemplo, como é que ajudamos os artistas, apoiando-os na mudança, na transformação das suas práticas em termos materiais? Não seria viável dizer algo como «não pode usar epóxi porque é mau para o ambiente». Temos de os apoiar para que possam fazer as coisas de modo diferente. Para isso, criámos o Future Materials Bank [Banco de Materiais do Futuro], que já tem uma dimensão considerável, com muitos tipos de materiais não tóxicos que outros artistas criaram e que os artistas podem usar para trabalhar de forma mais ecológica e sustentável.
Este banco está acessível a toda a gente. Temos um laboratório com todos os materiais para que as pessoas os possam ver aqui, mas também temos o banco de materiais online. O banco de materiais do futuro é muito importante para nós, mas também para outras pessoas e outras organizações, porque o partilhamos frequentemente com outras organizações. A integração de outras disciplinas, a transversalidade das disciplinas e a relação com outros setores são igualmente fundamentais. Na prática, isso significa que contamos, por exemplo, com alguns agricultores que exercem simultaneamente funções de conselheiros económicos e especialistas em recolha de plantas. Muitas destas coisas podem agora ser experienciadas pelos artistas em residência, talvez também como formas de sobrevivência, para que possam compreender formas de comportamento diferentes. E isso está a funcionar muito bem.
Mas os desafios também são muitos. Existe muita precariedade no seio da comunidade artística. Especialmente se olharmos para ela a partir da perspetiva do Sul global. Em primeiro lugar, como se pode mitigar essa precariedade? Não podemos resolver a situação, mas como é que podemos ajudar? Mas há também a diferença – digamos que – colonial, que torna essa precariedade ainda maior. Quer dizer, para quem vem do Bangladesh, o dinheiro tem um valor diferente do que para quem vem dos EUA. É simples. As taxas de câmbio que temos no mundo fazem com que o dólar seja mais valioso. Então, como mitigar esta diferença? Como podemos acomodar os artistas em residência nesta situação?
Isto também prova que a estrutura que tínhamos antes, e que não levava em conta estas condições, criou um tipo de arte, de estética, de pensamento que agora é muito diferente. Ou seja, a estética e a prática estão ligadas a estas condições e estas alteram o aspeto da prática. Tudo isto foi importante na nossa reflexão dos últimos cinco anos.
Como é que nasceu o Laboratório de Materiais do Futuro?
Tudo começou durante a crise da Covid, quando o Kieren Jones, professor do mestrado em Material Futures da Central Saint Martins fez uma residência na Jan van Eyck Academie. Nessa residência, ele quis desenvolver esse tema. Começou a recolher materiais de artistas que fossem mais sustentáveis, mais ecológicos e não tóxicos. E, naqueles seis meses, deu os primeiros passos do laboratório que temos atualmente.
Depois, começámos a fotografar e a pedir fotografias, e tudo se transformou num grande projeto. Por isso, vai passar a existir num espaço de design muito inovador com 200 metros quadrados, na Jan van Eyck Academie. E trabalhamos com muitos parceiros. Por exemplo, trabalhamos com a Brightlands, uma subsidiária da DSM, que é uma importante empresa química.
Também temos bolsas que permitem que as pessoas possam utilizar os laboratórios. Por exemplo, tivemos a Jesse Adler, que conseguiu extrair pigmentos de cogumelos num ambiente de laboratório. Mas é igualmente fundamental fazê-lo num ambiente final. Se o fizermos apenas num laboratório, não vai funcionar. Se o fizermos num laboratório mas estivermos numa estrutura como a da Jan van Eyck Academie, juntamente com outras 38 pessoas com tipos diferentes de background, tudo funciona de modo muito diferente. Se tivermos uma situação end-to-end em que estabelecemos parcerias entre setores, podemos conseguir muito mais do que se o fizermos apenas num ambiente especializado.
O Laboratório de Materiais do Futuro não é apenas um laboratório e um banco, pois também oferece bolsas, longos períodos de investigação, e também encontros, nos quais filmamos a maior parte das apresentações que estes artistas fazem. E está tudo disponível no sítio Web para que seja possível ver como criar e trabalhar com determinados materiais, quase como um laboratório em formato diy, com base nos materiais.
Que pontos encontrou em comum entre a Gulbenkian e a Jan van Eyck Academie quando nos visitou?
Encontrámos muitas ligações. Senti o desejo da Gulbenkian de descobrir novas formas de pensar o que um museu pode ser. Um museu rodeado por um jardim é um excelente ponto de partida para repensar o museu como um espaço para as pessoas, das pessoas, e também em relação à natureza. Nesse sentido, temos muitos pontos em comum.
Acho muito corajoso que uma grande estrutura como a Gulbenkian tenha decidido começar a dar passos, e já os está a dar, para repensar o seu modelo ou os modelos que existem, de uma forma diferente. Mas também há todo um lado científico, e isso é muito importante.
Por sermos muito pequenos, a nossa forma de tentar articular a arte e a ciência, por exemplo, afastando de alguma forma as artes dos mercados e aproximando a ciência do conhecimento público, também me parece muito interessante. Por isso, penso que também temos muitos pontos em comum neste domínio.