Financiamento climático para as comunidades indígenas
Neste artigo, Yani Saloh, representante de um dos vencedores do Prémio Gulbenkian para a Humanidade 2023, reflete sobre a importância do financiamento direto para os Povos Indígenas e Comunidades Locais.
Durante a COP28, a Aliança Global de Comunidades Territoriais (GATC) divulgou um relatório onde apontava falhas nos esforços globais para financiar Comunidades Indígenas/Locais ativas na conservação das florestas tropicais e da sua biodiversidade em África, na Ásia e na América Latina. Apesar de protegerem 80% da biodiversidade global, as comunidades indígenas receberam apenas 7% de todo o financiamento atribuído pelos mecanismos da COP.
Entre muitos acordos no Dubai, uma das poucas questões em que todos estão em consonância é que o trabalho com Povos Indígenas e Comunidades Locais (PICL) constitui um aspeto crucial para resolver a crise climática. Os PICL detêm conhecimentos tradicionais e práticas sustentáveis que lhes permitem viver em harmonia com os seus ecossistemas.
No entanto, continua a verificar-se controvérsia em torno da melhor forma de canalizar as verbas para os PICL – será melhor fazê-lo diretamente ou através de intermediários como os Governos ou as ONG? Os dados revelam que estes fundos são frequentemente desviados antes de chegarem às comunidades mais necessitadas.
O relatório Indigenous Peoples and Local Communities Forest Tenure Pledge (Compromisso de Posse Florestal de Povos Indígenas e Comunidades Locais) do Forest Tenure Funders Group (FTFG) destacou que sistemas de financiamento desatualizados, muitas vezes mediados por terceiros, fazem com que apenas uma pequena fração dos fundos chegue aos PICL. “Seria preciso perguntar a estes intermediários para onde vai todo o dinheiro e em que está a ser investido. Isso também gostaríamos de saber”, disse Levi Sucre Romero, líder indígena da comunidade Bribri costa-riquenha, que faz parte do conselho do GATC, na COP28.
Algumas entidades colocam em causa a capacidade das populações indígenas para gerir estes fundos. Partem do princípio de que os PICL não têm capacidade para gerir o dinheiro e prestar contas sobre os gastos, que estão sujeitos à corrupção e à influência das elites locais e que o dinheiro não será investido da melhor forma. Por conseguinte, é necessário um intermediário responsável por regular e monitorizar a disponibilização e utilização desses fundos. E estes intermediários cobram comissões.
Outras defendem um modelo de “Transferência Direta”, ou seja, atribuir aos PICL os fundos de que necessitam respeitando o seu direito e capacidade de os gerirem e gastarem como entenderem. Quem gostaria que o seu patrão lhe dissesse como gastar o seu salário e o vigiasse enquanto o gasta?
A partir da minha experiência de trabalho neste campo, consigo ver os aspetos positivos e negativos de ambas as abordagens.
Mas, antes de mais, devemos reconhecer e celebrar as boas notícias: os PICL são muito mais reconhecidos e respeitados do que eram quando comecei a minha carreira há 25 anos. A questão que se coloca atualmente não é se devemos financiá-los, mas como. E isso é efetivamente um progresso alcançado graças às campanhas incansáveis de várias ONG e Organizações da Sociedade Civil do mundo inteiro.
De facto, os sistemas de governação dos PICL podem ser pouco transparentes e pouco representativos, sendo suscetíveis às elites locais e sujeitas a fraudes. No entanto, o mesmo se pode dizer das ONG e dos Governos.
A Fundação Calouste Gulbenkian, uma organização filantrópica com sede em Lisboa, Portugal, atribuiu, em julho deste ano, o seu prémio anual Prémio Gulbenkian para a Humanidade a três indivíduos que têm promovido iniciativas de recuperação de ecossistemas no Sul Global. O prémio, de um milhão de euros, foi dividido entre os vencedores e destina-se a apoiar as comunidades que enfrentam alguns dos piores impactos das alterações climáticas, a fim de proteger os recursos naturais e os ecossistemas que sustentam os seus meios de subsistência locais e o sistema climático global. Desde que o prémio foi criado, em 2020, o júri distinguiu diferentes estratégias de ação climática, incluindo a mobilização dos jovens, a criação de coligações, o desenvolvimento de soluções locais e a investigação científica. O prémio abre portas a um mundo de possibilidades, mostrando-nos que ainda há esperança e que, se agirmos agora, podemos construir um futuro melhor e mais sustentável. Nesta edição (2023), o Prémio reconheceu o papel fundamental dos povos indígenas e comunidades locais, assim como a necessidade de encontrar soluções baseadas na natureza para combater as alterações climáticas de forma sustentável.
Bandi, líder da comunidade Dayak Iban Sungai Utik em Kalimantan Ocidental, na Indonésia, foi um dos galardoados em reconhecimento da sua liderança exemplar. Com cerca de 90 anos de idade, Bandi testemunhou a desflorestação massiva do Bornéu, lembra-se da ocupação japonesa, da independência dos holandeses e da era da exploração madeireira comercial desenfreada. Há mais de meio século que a sua comunidade protege a sua floresta de forma persistente, enfrentando os desafios do desmatamento ilegal e da agricultura industrial. Devemos o nosso agradecimento a pessoas como Bandi e à sua comunidade – são as suas ações locais no terreno que protegem o nosso ecossistema vital.
O financiamento do Prémio Gulbenkian destina-se a apoiar diretamente a comunidade de Bandi, a fim de sustentar a sua subsistência e ajudá-la a continuar a proteger os 9500 hectares de terra no Bornéu sob o seu domínio. Esta é a primeira vez que a comunidade recebe uma recompensa financeira pela conservação da sua floresta. A promessa de que “serão pagos pela conservação da floresta” tem sido repetida vezes sem conta, mas ainda não tinha existido qualquer pagamento. O sentimento de frustração tende a crescer. O financiamento da Gulbenkian assegurou a compensação monetária merecida, correspondente a 25% do prémio total, que foi distribuída diretamente por cada um dos 90 agregados familiares (287 pessoas). Isto veio contribuir para criar confiança e ganhar tempo, de uma forma inédita.
É importante compreender a realidade atual. As comunidades rurais já não são comunidades isoladas, nem querem sê-lo. Quando perguntamos o que é importante na comunidade Dayak Iban Sungai Utik, as respostas são muitas e variadas. Para Bandi, tudo gira em torno da floresta. A geração mais jovem está preocupada com a educação, o acesso à Internet, os telemóveis, os computadores portáteis, as motas e os empregos com um rendimento monetário. As mães dão prioridade a uma boa colheita, à alimentação, à educação e aos serviços de saúde. Enquanto isso, os pais procuram um rendimento estável e uma forma de sustento.
Para gerir estas prioridades diversificadas e ajudar na tomada de decisões, assim como para evitar alguns dos problemas (sentidos) acima mencionados, a comunidade Dayak Iban criou agora um Comité de Direção (CD). O meu papel é de Parceira Comunitária de Aprendizagem (PCA) (Community Learning Partner), aconselhando, capacitando e fortalecendo esta instituição comunitária como entidade executiva para receber, atribuir e gerir os fundos, com orientações operacionais definidas e acordadas entre a Gulbenkian e o CD da comunidade. As atividades foram projetadas para melhorar a qualidade de vida da comunidade, a sua capacidade de enfrentar desafios e criar resistência às alterações climáticas, alinhando-se com as orientações da Fundação Calouste Gulbenkian e privilegiando soluções, esforços colaborativos e iniciativas que beneficiem a natureza e a humanidade.
O Comité de Direção estabeleceu prioridades para melhorar a qualidade da educação, dos serviços de saúde, dos rendimentos provenientes de boas práticas agrícolas, do ecoturismo, da criação de animais e do turismo/alojamento em cada família. A comunidade aprecia o facto de receberem dinheiro sem restrições para fazerem frente às suas necessidades básicas, assim como a possibilidade de escolherem as suas próprias prioridades e o apoio para as implementarem. O processo está sujeito a auditoria e supervisão através de um controlo regular, com um mecanismo de reclamação incorporado. Enquanto PCA, recorro constantemente aos meus contactos de longa data, às minhas relações e à minha confiança pessoal. Compreender a dinâmica interna da comunidade, respeitar o comportamento cultural e ter a flexibilidade necessária para alinhar as atividades com as suas necessidades vai contribuir para o sucesso de iniciativas deste género.
Trata-se de um processo de aprendizagem mútua, e a nossa esperança é que este estudo de caso possa servir de modelo para o financiamento direto de outras iniciativas lideradas pela comunidade, abordando desafios de curto e longo prazo, respeitando as necessidades e cultura comunitárias.
A fim de abordar efetivamente a questão da emergência climática, os esforços devem ir além da mera redução das emissões de gases com efeito de estufa, e incluir o desenvolvimento sustentável, a proteção da biodiversidade e a promoção dos direitos, da competência e dos meios de subsistência das comunidades marginalizadas dos PICL.
O modelo da Fundação Calouste Gulbenkian serve de inspiração para que outros grupos comunitários e governos de todo o mundo confiem em abordagens lideradas pela comunidade.
Este artigo de opinião de Yani Saloh, amiga de Sungai Utik (Parceira Comunitário de Aprendizagem) foi publicado originalmente no Mongabay.