«Eu crio o meu trabalho para ser um espelho em que nos olhamos.»
Quando foi que começaste a incorporar fatos nas tuas performances e como é que o seu papel evoluiu ao longo do tempo?
Na verdade, foi ao contrário. Primeiro fiz fatos, só depois é que pensei na estrutura da performance.
Comecei a trabalhar no fato como uma armadura para usar num evento fetichista mensal organizado em Tóquio, o Department-H. Nesse evento, o disfarce era essencial para poder ser eu própria e encarnar a minha fantasia.
Comecei a atuar em palco para mostrar as minhas fantasias. Desde então, este tem sido sempre o local das minhas apresentações. Depois, comecei a ser convidada para museus e festivais, no Japão e no estrangeiro.
Nas tuas performances, crias fatos que são extensões da tua pele. O que te leva a utilizar estas extensões? Consideras que essas extensões são o que te define como «Saeborg» (cyborg)?
Sempre detestei que o meu papel fosse definido pela minha própria figura, pela minha forma e pelo facto de ser mulher. É por isso que procurei criar um fato que me ajudasse a ultrapassar essas realidades desagradáveis e me deixasse entusiasmada.
Comecei por encomendar e comprar peças de roupa queer e a experimentar diversas transformações no Department-H todos os meses. Acabei por chegar à conclusão que a única maneira de conseguir o que queria era criar os meus próprios fatos, apesar de não ter muita experiência.
Sinto-me muito atraída pelo látex. É um material extremamente maleável e que permite criar formas para transformar o corpo. Acho que este estado distorcido de tentar compensar o que nos falta é muito cyborg.
No Japão, havia um brinquedo chamado cyborg transformável, que se podia reconfigurar substituindo diferentes peças. Então, comecei a brincar com o meu próprio corpo.
As performances com fatos de látex devem ser extremamente exigentes ao nível físico! O que te atrai no látex como material de trabalho e como é que este afeta a tua experiência durante uma performance, tanto física como emocionalmente?
Atrai-me a sua plasticidade e a sua textura de brinquedo. É um material de sonho.
Também gosto do forte nível de sincronização, uma vez que este se encontra em contacto próximo com o meu corpo. O látex faz-nos sentir calor ou frio quando o usamos, e faz-nos suar imenso. É incómodo, mas não é pesado e é higiénico, porque se pode lavar.
Existem muitos tipos de fatos de látex. Os meus fatos são construções insufláveis, o que os torna significativamente mais complicados. Principalmente porque nos condicionam fisicamente. O nosso corpo fica expandido, pelo que é necessário algum tempo para nos habituarmos. Como faço os meus fatos com diferentes combinações de acessórios, não os consigo vestir sozinha. Preciso de alguém para me ajudar em todos os momentos.
Numa das minhas performances recentes, há uma cena em que o público assume o papel de cuidador, ao alimentar a biberão um leitão recém-nascido. Esta é uma forma positiva de encarar este incómodo.
Existe apenas um período muito curto na vida de uma pessoa em que esta é completamente livre e independente. Grande parte do tempo, desde que nascemos e até à idade adulta, e antes de morrermos, dependemos dos cuidados de outras pessoas. No entanto, esta não é uma relação unidirecional; há momentos em que nos apercebemos de que estamos a receber cuidados quando cuidarmos dos outros.
Eu costumava pensar que era inconveniente não poder vestir o meu fato sozinha, mas agora vejo-o como uma coisa positiva.
Em Slaughterhouse, constróis uma realidade distópica e estranha. O que te atrai nas distopias que usas como ferramenta narrativa nas tuas instalações e performances?
Sempre gostei de ler novelas distópicas de ficção científica e penso que estas me influenciaram. Porém, ultimamente, tenho vindo a sentir, cada vez mais, que a realidade está a ultrapassar as ficções. Por isso, quero agora experimentar como criar uma realidade utópica nas minhas apresentações.
O teu espetáculo explora temas densos, como a relação entre os seres humanos e os animais, a perceção dos corpos e dos papéis das mulheres, e também temas mais alargados relacionados com a exploração e a natureza. Como é que os cenários e personagens expressivos e cute ou fofinhos influenciam a forma como o público entende estes temas?
Eu faço as minhas personagens cute e pop porque acho que é mais impactante do que representar a crueldade enquanto crueldade. Além disso, as minhas personagens não falam. Não dizem uma palavra. Penso que isso estimula mais a imaginação das pessoas.
O meu trabalho é como um espelho de nós próprios. Ao longo da nossa longa história, os seres humanos sempre tiveram uma parceria com os animais de pecuária. Por isso, quero observar-nos a nós próprios através dos seus olhos.
A performance termina com uma animada festa na qual figuras humanas e não humanas dançam juntas. Trata-se de um gesto de esperança em direção à unidade, ou há uma camada de ironia neste excesso de alegria?
Isso está relacionado com o facto de eu ter estado envolvida com o Department-H durante muitos anos. Trata-se de um evento ao estilo de um salão e é importante que os participantes passem algum tempo juntos. Podem não se conhecer de todo, ou ter convicções políticas diferentes, mas estão juntos no mesmo sítio, nem que seja por um breve momento.
Dançar com porcos não é uma ocorrência vulgar, o que a torna ainda mais especial. No entanto, passar tempo juntos é mais importante do que dançar. A comunicação pode ser modesta, mas mesmo um «choca aí», uma palmadinha nas costas ou um olhar direto nos olhos de um animal de pecuária pode despertar as nossas emoções interiores.
Pensas que o público se vê refletido nas figuras e no mundo que crias, ou achas que o vê como uma realidade separada que existe apenas no seio da performance?
O que desejo é que o público experimente uma transformação ou um renascimento ao reconsiderar a sua relação com as personagens que representam os animais de pecuária.
As minhas obras são frequentemente descritas como pesadelos, mas acredito que o sonho nunca mudará se não mudarmos a realidade. Nesse sentido, penso que estão de alguma forma relacionadas com a realidade.
No Japão, o cosplay e a transformação em personagens fazem parte da cultura mainstream, especialmente por causa dos manga e dos anime. No teu caso, crias personagens totalmente originais. Como é que estas foram recebidas no teu país?
No Japão, existe o cosplay original e o cosplay de personagens existentes. Em ambos os casos, os fatos encarnam a fantasia individual. Mas não creio que estes estejam tão difundidos como a cultura do cosplay do Halloween nos países ocidentais.
Também gosto muito da cultura fan fiction, mas pensei que trabalhar com os meus desenhos originais me daria mais liberdade.
Dito isto, é claro que me inspiro em muitos desenhos diferentes. Os anúncios que publico à procura de performers para trabalhar comigo recebem muitas partilhas e atenção, muito mais do que quando anuncio as minhas performances. É como se as pessoas estivessem mais interessadas na oportunidade de transformação do que em ver os meus espetáculos. Talvez toda a gente queira ser um animal.
Já apresentaste as tuas obras internacionalmente. Notaste alguma diferença significativa na forma como o público de diferentes países reage ao teu trabalho?
Se tivesse que dizer qual é a principal diferença em relação ao Japão, teria de referir a presença ou ausência da cultura do contacto visual.
No Ocidente, as pessoas usam o contacto visual para confirmar que se querem aproximar de alguém. No Japão, as pessoas avaliam frequentemente se podem fazer algo quando outros japoneses também estão a fazer. Não existem sinais que indiquem que nos aproximemos. Por outras palavras, há muitas situações em que não é possível chegar a entendimentos pessoais.
Isto parece estar relacionado com o facto de, no Japão, em comparação com o Ocidente, não existirem muitas oportunidades de contacto com pessoas de culturas completamente diferentes. Estamos habituados a interagir com pessoas com valores e culturas semelhantes, e o método de comunicação de confirmar ou cumprimentar para evitar mal-entendidos não parece ser tão comum.
Além disso, mais do que a reação do público, sinto que há uma enorme diferença na forma do corpo dos performers individualmente.
Todos os fatos são feitos à minha medida, pelo que uma das condições para trabalhar comigo é ter um tamanho semelhante ao meu. No entanto, apesar de sermos da mesma altura, temos estruturas ósseas muito diferentes. A sua cintura é frequentemente mais acima e a sua cabeça mais pequena e, em geral, têm mais curvas do que eu. Por exemplo, a cabeça de uma pessoa ocidental é estreita à frente e alongada atrás, enquanto a cabeça de uma pessoa japonesa é mais comprida. Isso lembra-me do facto de que sou de uma raça que tem o rosto achatado.
Também explica o porquê do Giger ter desenhado os Aliens como os desenhou. As suas cabeças têm a forma de um pénis, como símbolo de agressão, mas a sua cabeça alonga-se para trás. Um japonês não o desenharia assim. A cabeça alongar-se ia para cima, como o Ultraman.
Como foste recebida na tua performance em Lisboa?
Toda a gente parecia muito descontraída. Desta vez, utilizámos tapetes de palha e talvez isso tenha ajudado o público a sentir-se confortável e a assimilar-se com os tapetes. Por isso, decidimos ajustar o método de comunicação das personagens dos animais de pecuária fazendo-as andar à volta dos lugares de modo a interagir como se estivessem a relaxar.
Os públicos em Lisboa foram difíceis de compreender, pois pareciam tímidos, mas na verdade eram ousados, ou pareciam descontraídos, mas na verdade tinham algo em mente. Isto pode ter algo a ver com o facto de Lisboa ser uma cidade de diferentes etnias e um lugar para todos.
Portugal, situado no extremo da Europa, evoca uma imagem extraordinária e a sua luz, de uma beleza arrebatadora, é verdadeiramente impressionante. A cidade e o mar parecem estar contidos numa auréola de luz. Muitas vezes, experimentei a sensação de estar envolvida pela luz e de me tornar una com ela.
Sendo representada pelo Fado, imaginava que a cidade me faria sentir impressões nostálgicas, mas a mistura com os muitos turistas, incluindo eu própria, fez-me sentir uma energia caótica.
Desta vez, o CAM apresentou muitos artistas japoneses e foi graças a este facto que tive a possibilidade de vir a Lisboa.
No Japão, os pratos que vieram de Portugal há muito tempo ainda são populares e a comida portuguesa é deliciosa e muitos japoneses adoram-na.
Esta viagem fez-me sentir perto de Portugal e gosto muito do país. Espero sinceramente poder voltar a Lisboa, uma cidade cheia de luz que poderia engolir tudo.