Deixar tudo para não deixar a música
S., J., F., M., S., A., R., S., Z. e S. são todos adolescentes e todos refugiados a viver em Portugal. Perguntar-lhes como se sentem é um esforço vão. Estão sempre “bem”, mesmo quando a cara diz o contrário, mesmo naqueles raros momentos em que se expõem e deixam aperceber olhos lacrimejantes, mesmo quando têm no bolso um bilhete para, no dia seguinte, deixarem a nova casa e a nova escola com intenção de irem para longe e não mais voltar.
Friamente, estão bem. Com o regresso do estado Talibã ao poder, a música foi proibida no seu país, o Afeganistão. O ANIM – Afghanistan National Institute of Music, uma das poucas escolas mistas e a única escola de música do país – foi ocupado e os instrumentos destruídos. Nas salas de aula, nos corredores, no espaço exterior, instalou-se o silêncio. E o medo. Alunos e professores viveram meses com receio de retaliações. Ahmad Sarmast, o diretor do ANIM, não se cansou de apregoar o pânico em que vivia, receando diariamente pela vida dos seus alunos.
O processo foi complexo, mas alunos e professores foram resgatados, com a ajuda do violoncelista Yo Yo Ma e o governo do Qatar. No final de 2021 chegavam, em segurança, a Portugal, com a perspetiva de verem os seus chegar logo a seguir. A espera, em Lisboa, foi longa – demasiado longa para adolescentes – e os familiares nunca mais chegaram. Até que as coisas começaram a mexer. Os mais novos foram acolhidos em Braga. Outro grupo acabou por ser recebido pelo Município de Guimarães, ao abrigo do programa Guimarães Acolhe. Vivem numa casa nova, recuperada para os receber, a dois passos do Conservatório, onde têm aulas em regime articulado, com o apoio da Fundação Gulbenkian.
A relação da Fundação com o ANIM não é de agora. Há anos que a Gulbenkian apoia a Orquestra Zohra, o único ensemble feminino da ANIM. Símbolo da emanciapação das mulheres no Afeganistão, a Zohra já atuou no World Economic Forum, em Davos, no British Museum, em Londres e, claro, na Fundação Gulbenkian, em setembro de 2018, no âmbito do Festival Jovens Músicos. Nessa semana, houve também encontros e workshops entre elementos da Orquestra Gulbenkian e elementos da Zohra.
O apoio da Fundação à Zohra ou, de forma mais alargada, ao ANIM, solicitado pelo Alto-Comissariado para as Migrações, em 2022, foi acolhido sem hesitação. A Fundação apoia a prossecução dos estudos dos 10 jovens que entraram no Conservatório de Música de Guimarães.
Com idades compreendidas entre os 13 e os 17 anos, têm uma casa nova, uma escola (duas, por frequentarem o ensino articulado), continuam a tocar nas orquestras do ANIM e são acompanhados 24 horas por dia, 7 dias por semana, por uma equipa especializada e muito dedicada.
Saber lidar com as portas que se fecham…
Quem os acompanha sabe que apesar dos esforços para se sentirem “em casa”, não é fácil viver longe da família. Não é fácil comunicar em inglês, quanto mais em português. Não é fácil adaptar-se às rotinas, aos hábitos, à cultura portuguesa. Não é fácil acompanhar o ritmo escolar, seja na Escola Secundária Francisco de Holanda, seja no Conservatório de Guimarães. Não é fácil integrar-se.
Um dia, A., de 17 anos, perguntou a Domingos Castro (diretor do Conservatório) como conseguiria fazer amigos. Ser apadrinhado por elementos da Associação de Estudantes (AE) poderia funcionar, pensou Domingos Castro que viu em A. um potencial elo de ligação entre dois mundos cuja fronteira estava difícil de atravessar.
A Associação de Estudantes acolheu a ideia, mas chocou com a barreira da língua, com as rotinas diferentes, as faltas por tudo e por nada, a dificuldade de relacionamento entre rapazes (portugueses) e raparigas (afegãs). A inadaptação aos sabores portugueses só complicou, porque começaram a fazer todas as refeições (momento de confraternização por natureza) em casa, explica um elemento da AE. Foi “muito difícil estabelecer contacto, ganharem confiança em nós”, conta. “Foi um choque cultural”, justifica. “Não deve ser fácil”, conclui.
Foi de tal modo que antes do fim do primeiro período muitos quiseram desistir da música – aquilo que os tinha tirado do terror em que viviam no Afeganistão e trazido até Portugal. Domingos Castro chamou-os um a um. F. confessou que o que a movia era outra coisa – queria ser médica. Domingos Castro, medindo as palavras, disse-lhe que seria difícil concretizar esse desejo em Portugal. Entrar em Medicina já é sobejamente difícil para um português, quanto mais para um aluno que mal fala inglês e tem dificuldade em acompanhar todas as aulas.
Perante a porta que se fechava, o diretor do Conservatório abria uma janela: e por que não Musicoterapia? Seria um bom compromisso entre música e medicina. F. ganhou novo ânimo e até participou, como voluntária, num espetáculo da Cercigui. Na mesma linha, R. queria estudar Direito, mas acolheu a sugestão de seguir produção, uma área onde poderia usar as leis no seu trabalho. Dois outros sonhavam com informática – contentaram-se com computação e a perspetiva de virem a criar música para jogos de computador.
Domingos Castro reviu tudo. As aulas individuais, de instrumento, corriam às mil maravilhas. O resto foi (ainda mais) adaptado: fizeram-se mais alterações curriculares, adaptaram-se conteúdos… e agora, passados uns tempos juntos nas aulas de coro e de ensemble experimental, está tudo a fluir melhor. As barreiras começam a quebrar-se.
Ondas de choque
Mas não é só com o exterior que há fricção. A harmonia dentro do grupo também não é fácil, sobretudo porque este não era um grupo, no Afeganistão. Apesar da proximidade das idades, não eram amigos – eram colegas. E nem todos pensam ou encaram a nova vida da mesma forma.
A. considera que poucos levam esta vida a sério. Mas o que mais lhe custa é que a irmã, S., desperdice a oportunidade que tem nas mãos. As outras três irmãs, no Afeganistão, nem podem ir à escola… E isto é entre irmãos.
Na casa há a que não dispensa o véu no Ramadão e a que, pelo contrário, quer ser influencer, há os que tocam instrumentos tradicionais e o que sonha tornar-se pop star. Na cozinha e à mesa corre tudo bem, mas as aulas de grupo começaram por ser muito complicadas. Os rapazes costumavam ir. As raparigas eram muito inconstantes. Mas as de educação física ou as idas à piscina é que se tornaram um pesadelo. Rapazes e raparigas tiveram de ser separados, porque por mais ocidentalizadas que se possam estar a tornar as suas mentes, eles não aceitam que elas mostrem o corpo a rapazes e elas não aceitam fazê-lo à frente dos seus compatriotas. A ligação às raízes é forte.
A preocupação com quem ficou para trás também se faz sentir com força. Tentam por tudo mandar dinheiro para casa, onde não há trabalho – um dos jovens tentou mandar 500€ para a família (poupados com o que recebeu do Estado para criar um pé-de-meia para mais tarde se autonomizar). Agora, os mais velhos, pelos 18, já só pedem ajuda para encontrar trabalhos a tempo parcial.
No Conservatório como na casa, é tudo feito para que se sintam bem. Os colegas não são família, diz M. através de Laleh Esteki, a iraniana que trabalha com o Alto-Comissariado para as Migrações e os visita pelo menos uma vez por semana – mas “os técnicos sim, são como família”. É o que lhes vale, enquanto os seus não chegam a Portugal, como prometido.
Tem uma irmã maestra a viver nos Estados Unidos e o namorado, também do ANIM, está agora no Canadá. É todo um mundo que se poderia abrir, para ela. E voltar para o Afeganistão? M. não hesita e dispara: “Sim, mas sem os talibãs! Quem não quer?”
Para saber mais sobre a saída dos alunos do ANIM do Afeganistão, em agosto de 2021, veja a reportagem Symphony of Courage, realizada pela Voice of America.