Cinema Karl Marx, Luanda
Mónica de Miranda (1976), artista portuguesa de descendência angolana, vive e trabalha entre Lisboa e Luanda e debruça-se sobre temas que lhe são próximos, como a «arqueologia urbana e geografias pessoais»[1] ou noções de identidade, memória e diáspora.
O Museu Calouste Gulbenkian adquiriu, em 2019, para a Coleção Moderna, duas das suas obras em fotografia da série Cinema Karl Marx: Twins e Ticket Office, datadas de 2017. Estes dois trabalhos, juntamente com uma terceira fotografia intitulada Cinema Karl Marx, do mesmo ano, constituem um núcleo de trabalho e inserem-se numa série mais alargada, o projeto Panorama (2017).
Panorama reveste-se de vários significados. O projeto empresta o nome de um conhecido hotel, outrora próspero, um edifício modernista que se encontra hoje em ruínas, situado na Ilha do Cabo, em Luanda. Mónica de Miranda fotografou este e outros edifícios de Angola em estado de degradação, nomeadamente o Cinema Karl Marx. Estas imagens evocam o passado e colocam questões incómodas, mas relevantes no presente, em torno de temas como a história social e política de Angola, o património arquitetónico, o pós-colonialismo ou a gentrificação. Assim, o espetador é convidado a refletir sobre as estruturas de poder envolvidas na construção de uma paisagem urbana, bem como sobre o atual panorama social e político que a mesma evoca.
Inserido nesta mesma problemática, o Cinema Karl Marx – denominado Cinema Avis antes da independência – foi uma sala de espetáculos modernista de Luanda, construída durante a época colonial e inaugurada em novembro de 1961. A obra foi projetada por dois arquitetos portugueses, Luís Garcia de Castilho e João Garcia de Castilho, que se mudaram para Angola e aí colaboraram na construção de vários edifícios emblemáticos. É relevante que se trate de um cinema/sala de espetáculos, que servia os interesses do Estado Novo e da sua «política metropolitana de ocupação das colónias»[2], operando como instrumento de propaganda.
Através de um vídeo da época[3], constatamos a modernidade que o cinema, em tempos, ostentou. Por outro lado, as fotografias de Mónica de Miranda oferecem-nos uma visão atual do exterior e interior deste edifício histórico e do seu pobre estado de preservação.
No tríptico Cinema Karl Marx e no díptico Twins, saltam à vista duas personagens femininas gémeas, de presença intrigante. Estas personagens são recorrentes na obra da artista e aparecem lado a lado em outras séries, como Archipelago (2014), Field Work (2016) e Panorama (2017). O díptico Twins cruza um registo documental da plateia com a marcada presença teatral das duas irmãs. Na primeira fotografia, o espectador é colocado no local do ecrã – olha o público e é olhado por este, num jogo entre olhar e ser olhado, que ecoa na dicotomia eu-outro. Segundo a própria artista, as gémeas retratam «essa dualidade de pertença, do passado e do presente».[4] Esta informação adquire mais importância quando atentamos na biografia da artista, filha de mãe angolana, que se pode identificar com sentimentos de pertença – não pertença, alternando entre Portugal e Angola, Europa e África. Na segunda fotografia somos levados a observar com mais detalhe a sala, numa aproximação das cadeiras, vazias e degradadas. Também elas evocam o passado e revelam o presente.
Hoje ao abandono, o edifício é uma recordação desconfortável do passado colonial, da guerra civil, da decadência de locais históricos e culturais e do processo de gentrificação de que a cidade foi palco. Mónica de Miranda fixa a imagem do lugar contra o apagamento da memória. Nas palavras da artista, «these ruins exist across Angola. They stand out of their time and resist attempts to forget or erase our history».[5]
[2] «Luanda e suas segregações: uma análise a partir das salas de cinema (1940-1960)» in Mulemba, julho/dezembro 2017, Rio de Janeiro: URFJ, v. 9, n. 17, p. 80.
[3] «Novo cinema em Luanda», RTP Arquivos.
[4] Transcrito de «Panorama by Mónica de Miranda, This is Not a White Cube».
[5] «Mónica de Miranda’s best photograph: a ruined hotel in Angola», The Guardian.