Camila Mandillo
“Estar em palco e cantar é abrir tudo dentro de mim para quem está a ouvir”
O “bichinho de cantar” já lá estava quando, ainda criança, ouvia os pais nos ensaios do Coro Gulbenkian, sentada nos degraus da Sala de Ensaios, de olhos a brilhar. Ainda assim, Camila estudou 15 anos de guitarra no Conservatório Nacional de Lisboa – onde ganhou a “disciplina de instrumentista” –, antes de decidir dedicar-se totalmente ao canto e à ópera.
Foi membro fundador, solista e assistente de direção artística do Coro Infantil da Universidade de Lisboa. Vive em Berlim faz já seis anos, e a par com o mestrado, na Hoschule für musik Hanns Eisler, tem participado em recitais operáticos e projetos de música contemporânea dentro e fora de Portugal. Para esta bolseira, a música é uma “linguagem não oficial”, impossível de explicar por palavras.
Fala-nos do teu percurso na Música. Começou cedo?
Os meus pais sempre cantaram, inclusive aqui no Coro Gulbenkian, portanto tive sempre uma vertente musical muito forte na família. Vinha muitas vezes assistir aos ensaios do Coro Gulbenkian, ficava num cantinho e não podia falar, mas adorava! (risos)
A minha participação no Coro Infantil da Universidade de Lisboa foi, no fundo, a continuação do sonho. Assistia aos ensaios do coro e, de repente, fazia parte de um.
Quando terminei o curso de guitarra, muita gente estava à espera que seguisse esse percurso… Mas eu percebi que me faltava qualquer coisa. Acho que cantar é muito pessoal, é como ter um instrumento dentro de nós que é só nosso. No fundo, sempre cantei com a guitarra.
Decidi candidatar-me a uma universidade de canto e comecei a ter aulas particulares com a professora Joana Nascimento, que também canta aqui no Coro Gulbenkian. Depois candidatei-me a Berlim e pronto, comecei assim o meu percurso mais “à séria” como cantora.
A par com a guitarra e o canto também fizeste formação em dança e teatro. Porquê?
Sim, fiz dois anos de Ballet na Escola de Dança do Conservatório e tive aulas de expressão dramática. O Coro Infantil também tem uma parte muito física conectada. Eu acredito que não faz sentido não incorporar a corporalidade na voz; a dança e o teatro são essenciais.
A tua experiência com a guitarra foi útil para o teu trabalho agora?
A guitarra trouxe-me muito, porque me deu a disciplina de instrumentalista, de atacar a coisa até ela estar bem. Os cantores não podem cantar a mesma quantidade de horas que um músico pode tocar um instrumento, por isso as pessoas têm tendência a achar que o trabalho é menor, mas é mentira. Nós temos é um trabalho mais teórico, de perceber aquilo que estamos a dizer, de decorar texto, trabalhar a dicção.
No caso da guitarra temos o problema das tendinites; no caso do canto não temos tendinites, mas temos muitas outras coisas que podem afetar a voz, seja uma constipação, andar de avião, beber dois cafés por dia… A ideia de que as cantoras são divas é uma piada, mas a verdade é que nós temos de tomar bem conta do nosso instrumento.
No caso da ópera não estás só a interpretar uma canção, há uma parte muito teatral.
Sim, e essa personagem vai tocar alguém que se identifique com a personagem, ou com a história, ou mesmo só pela música. De alguma maneira a ópera toca fundo nalgum nervo. É muito mais do que interpretar um papel; é trazer de mim ao papel e também do papel a mim.
Eu costumo dizer que tenho terror às audições, porque falta-me toda a história do antes e depois, falta-me contexto. Sem ele é difícil entrar em palco e cantar uma ária de repente. É por isso que gosto tanto da ópera: durante uma performance operática nós crescemos como pessoas, vivemos aquilo.
E a língua, é uma barreira?
Eu sou italiana, da parte da mãe, portanto essa já está ganha (risos). O alemão, ao fim de seis anos em Berlim era mau se não falasse. De resto, o trabalho técnico de quem canta é esse, é trabalhar a dicção perfeita. Para mim é essencial perceber exatamente o que estão a dizer. Sou um bocadinho obsessiva, até às virgulas e pontos.
Ouça Camila a interpretar “The Turtle Dove”, de Ralph Vaughan Williams
Qual dirias que é o maior obstáculo para seguir uma carreira como a tua?
O maior obstáculo somos nós mesmos. Acho que isto se aplica para qualquer intérprete: bailarino, instrumentista, cantor, ator, o que for. No que toca ao canto, e sendo que é tão pessoal, temos de estar muito bem connosco mesmos para conseguirmos interpretar a música e tocar as pessoas da maneira que um cantor se predispõe a fazer.
Para mim estar em palco e cantar é abrir tudo dentro de mim para quem me está a ouvir. Para que isso aconteça temos de estar completamente predispostos a tal; senão, não se passa nada, não toca ninguém. É um desafio constante.
Como está a correr a experiência em Berlim?
Está a correr muito bem. Gosto muito do meu professor, e acho que isso é a coisa principal – trabalhar com quem gostamos e sentimos que temos muito a aprender.
O que me atraiu na Hanns Eisler foi o facto de ser um curso bastante prático, com foco na corporalidade. É uma coisa um bocadinho alemã, muito física. Temos aulas de esgrima, dança, movimentação, espacialização, drama em palco. Chamou-me a atenção porque já vinha de acordo com aquilo em que acreditava e que tenho vindo a fazer.
Vês-te a ficar por lá? Onde te imaginas daqui a 10 anos?
Honestamente, não sei. Vou ficar onde conseguir ter maior atividade. Gostava de ficar no centro da Europa, mas não de estar parada. O meu sonho era trabalhar um pouco por toda a parte, incluindo em Portugal. Daqui a 10 anos gostava de viver em Zurique, por exemplo, com uma carreira internacional e a fazer produções de ópera em todo o lado.
Qual a importância da Bolsa Gulbenkian na tua vida?
É muito grande. Este mestrado, depois dos quatro anos de licenciatura, foi um período muito forte, com muito trabalho e intensificação nos aspetos que precisava de melhorar; encontrar a minha vocação dentro do canto, quem é a minha voz, quem sou eu. A bolsa Gulbenkian permitiu-me focar-me completamente nisso, sem ter de me preocupar com fatores à volta.
Como te sentes por fazer parte da rede de bolseiros Gulbenkian?
No ano passado tive uma reunião de bolseiros da área artística e foi muito engraçado ouvir as experiências deles. Fez-me perceber que somos um grupo de pessoas bastante ativo, motivadas para fazer coisas diferentes e que querem mudar o panorama nacional.
Sinto-me muito honrada por fazer parte deste grupo e espero fazer contribuições que venham a ser tao grandes quanto as que eles também aspiram. No futuro, espero cruzar-me com pessoas, não só da área musical, mas também da dança e cinema, para fazermos coisas juntos, cruzar ideias. Tenho a certeza de que isso vai acontecer assim que a pandemia acabar.
Histórias de Bolseiros
Desde 1955, a Fundação Gulbenkian apoiou mais de 30 mil pessoas de todas as áreas do saber, em Portugal e em mais de 100 países. Conheça as suas histórias.