«Borracha, Donut e Piñata», de Eugénia Mussa
Nasci em Moçambique e lá passei os primeiros cinco anos da minha vida, durante uma guerra civil – uma guerra secundária no contexto da Guerra Fria. Estávamos na década de 1980 e vivi estes primeiros anos com a sensação de que o resto do mundo rejubila em cor, mas eu habitava num canto cinzento. As montras da cidade de Maputo estavam sempre vazias e filas enormes formavam-se para adquirir bens essenciais. Era só graças aos livros, às revistas e a poucas sessões de televisão que sabia que existiam objetos coloridos, mas numa realidade distante. Nada me impressionava mais do que bolos com várias camadas coloridas, néones, e tudo o que tivesse cor-de-rosa.
Estes cinco anos dividem-se em duas partes muito distintas, e este contexto agreste corresponde apenas à segunda, mas foi esta que me direcionou precocemente para o desenho. Não é que tivesse escolha: filha única, passava os dias sozinha numa casa gigantesca sem televisão. Esta casa, situada no bairro da Polana, era enorme comparada com a anterior (parte 1), a casa dos meus avós, no bairro periférico da Matola, que era pequena e acolhedora.
Em 1983, devido ao contexto pouco propício, mudei-me para Portugal, mas regressava com frequência a Moçambique durante as férias grandes, trocava o verão português pelo «inverno» moçambicano. E foi durante uma dessas estadias que, aos 13 anos, contraí malária. Depois de passar uma temporada em Pemba, terra dos avós paternos – e onde há também maior incidência da doença –, pouco tempo depois de chegar a Maputo foi-me diagnosticado paludismo no grau 5, o mais elevado.
Os objetos aqui representados resultam destes dois períodos da minha vida. Ao contrair malária, encontrei-me em quase delírio constante durante cerca de uma semana; a barreira entre sonho e realidade confundia-se, mas com a malária não existem sonhos, só pesadelos, e um deles, o mais assustador, era também o mais enigmático, mais antigo e recorrente. E até à chegada da doença tinha conseguido esquivar-me de tentar perceber o que realmente o tornava tão assustador, mas quando o sonho se torna físico, há que ceder. Quando o fiz, finalmente percebi que era tudo uma questão de escala.
Na comédia futurística de Woody Allen, Sleeper (1973), a dada altura os heróis deparam-se com uma quinta em que tudo é gigante; os vegetais são do tamanho de um carro, o frango tem mais de três metros… Só que a versão que se projetava na minha mente não era nada cómica, e era física a sensação de que, de repente, a minha escala é transmutada era aterradora, os materiais/objetos tinham o tamanho e o peso de planetas.
Muitos anos mais tarde tornei-me pintora e um dia, acidentalmente, comecei a trabalhar com papel vegetal, o material perfeito para os objetos sonhados.
Os objetos Borracha, Donut, e Piñata representam o meu sonho e a sua escala, o pesadelo.