António Ole, o passado atual
António Ole (1951) nasceu António Oliveira em Luanda, mas viveu durante os anos da instrução primária na aldeia de Maiorca, próximo de Coimbra, de onde os seus avós paternos eram oriundos. Desta aldeia datam as primeiras memórias artísticas e a iniciação à prática do desenho. Regressado a Luanda, continua os estudos no Liceu Salvador Correia.
Ole é um artista angolano cuja obra resulta das suas viagens e descobertas, inspirada pelo local onde se encontra em dado momento. A influência da geografia começa desde cedo, onde já demonstra também um interesse pela rutura e pela ambiguidade tão caraterísticas na sua obra e refletidas na instalação Hidden Pages, Stolen Bodies [Páginas Escondidas, Corpos Roubados]. A instalação aborda um passado mais sombrio: conta a história negligenciada de vidas marcadas pelo trabalho forçado sob o domínio colonial no final do século XX.
As imagens e os objetos desta obra não são associados a indivíduos específicos, são corpos sem rosto, sem identidade, representando a ausência de memória da sociedade sobre um passado negligenciado e anónimo. Os objetos encontrados funcionam como relíquias e como uma espécie de «anti-lembranças»[1], em contraste com as lembranças turísticas que recordam momentos felizes. É disso exemplo a presença de uma bacia, um elemento comum na sua obra e que remonta à constante falta de água na sua casa. Durante anos, Ole tinha uma bacia debaixo das torneiras para aparar toda a água até ser retomado o seu abastecimento durante a noite, quando o artista se levantava e, ensonado, usava essa mesma bacia para encher um bidão. Estes elementos da vida real permitem compreender a vivência do artista numa cidade em guerra, acabando a sua arte por refletir uma ideia de sobrevivência.
Estes objetos incorporam uma história conturbada, desencadeando um processo de recordação como restos materiais do passado, formando um novo arquivo físico.
Em Hidden Pages, Stolen Bodies, o artista combinou os seus próprios filmes com objetos encontrados, de origens não identificadas, e fotografias que são cópias de documentos do arquivo municipal de Benguela – índices de nomes, mapas e fotografias –, referindo-se maioritariamente ao porto de Benguela (que era um dos principais pontos de embarque de navios portugueses na rota transatlântica de transporte de escravos, tanto para as Américas como para a Europa).
António Ole combina o material de forma não hierárquica, imaginando uma nova ideia de arquivo e possibilidades alternativas de escrever a história. Os objetos encontrados contam a vida quotidiana e as biografias negligenciadas, ganhando assim o mesmo valor dos materiais do arquivo oficial, também eles ignorados e esquecidos.
Esta instalação apresenta a intenção do artista em utilizar a arte como uma memória cultural, em vez de uma arma política, demonstrando outra faceta dos interesses do artista: a procura e a investigação sobre o trabalho forçado e a escravatura, que influenciam grande parte das suas instalações da década de 1990.
[1] Nadine Siegert, «The archive as construction site: collective memory and trauma in contemporary art from Angola», World Art, 2016, pp. 103-123.
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