À espera de Pina Bausch

No ano em que se assinalam os 35 anos da primeira apresentação, nos Encontros ACARTE, da Companhia Tanztheater Wuppertal, dirigida por Pina Bausch, neste texto recorda-se a participação e a influência desta bailarina e coreógrafa de renome internacional na programação da Fundação Calouste Gulbenkian.
27 set 2024 9 min
Dos Arquivos

É pela mão de Madalena de Azeredo Perdigão que Pina Bausch chega a Lisboa pela primeira vez, no âmbito da 3.ª Edição dos Encontros ACARTE, em 1989.

Em abril de 1984, a ex-diretora do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian apresentara ao Conselho de Administração a proposta de criação do ACARTE – Serviço de Animação, Criação Artística e Educação pela Arte, a qual foi aprovada ainda nesse mês. O futuro serviço caracterizava-se pela abertura à inovação e à experimentação, defendendo a inexistência de preconceitos quanto a géneros artísticos ou a formas de expressão. No campo da Dança privilegiava a apresentação de pequenas companhias ou grupos estrangeiros de vanguarda.

A Dança-Teatro como expressão artística surge nos anos 20 do século passado, na Alemanha, com o coreógrafo Rudolph Laban e foi depois desenvolvida pelo seu aluno Kurt Jooss, professor e coreógrafo, que foi mentor de Pina Bausch. Será, principalmente, com ela que a partir do início dos anos 70 se consolida esta nova expressão da Dança que influenciou mais tarde a programação do Ballet Gulbenkian, de que é exemplo a obra Só longe daqui (1984), coreografada e encenada por Vasco Wellenkamp e Ricardo Pais. A primeira apresentação de Dança-Teatro no ACARTE ocorrerá em 1986, com Suzanne Linke, coreógrafa e intérprete, no espetáculo Solos, integrado no ciclo Dança no Centro de Arte Moderna.

Em 1987 tem lugar a 1.ª edição dos Encontros ACARTE – Novo Teatro/Dança da Europa que visava permitir ao público e aos artistas portugueses o contato com outras realidades europeias nestas áreas e onde a Dança-Teatro assume protagonismo.

A obra de Pina Bausch, uma das personalidades mais importantes deste novo movimento, foi apresentada pela primeira vez na programação dos Encontros ACARTE na edição do ano seguinte, num ciclo de vídeo dedicado a vários coreógrafos. 

Madalena de Azeredo Perdigão – que viria a falecer a 5 de dezembro de 1989 – empenhar-se-ia em trazer a Portugal Pina Bausch e a sua Companhia. Para tal recorre à intervenção do historiador de Dança José Sasportes – à época encarregado do Serviço de Imprensa da embaixada de Portugal em Roma –, a quem pede para se deslocar a Paris e interceder junto da coreógrafa, que participava num almoço oferecido pelo Centro Cultural de Paris da Fundação Calouste Gulbenkian.

O objetivo foi conseguido. A Tanztheater Wupperthal de Pina Bausch apresenta-se no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian no âmbito da programação dos Encontros ACARTE 89. A coreógrafa tinha então 49 anos e uma carreira artística consolidada ao longo de mais de 20 anos. A obra apresentada intitulava-se Auf dem Gebirge hat man ein Geschrei gehörtDa montanha ouviu-se um grito

Apesar de sóbria, a encenação obrigava a alguns requisitos técnicos pouco comuns, de que são exemplos: os 15 músicos seniores e um maestro, que não poderiam ter menos de 65 anos, os 15 m³ de terra negra húmida para o palco e os 30 abetos com altura entre os 2,5 e 3,5 metros de altura.

Este bailado, um dos mais importantes do portfolio da criadora até à data, teve, em Lisboa, uma excelente reação do público e da imprensa.

Cumpriam-se os desígnios estabelecidos por Madalena de Azeredo Perdigão aquando da criação do serviço ACARTE: inovação, ousadia, correr riscos. 

A partir desta sua primeira apresentação, a coreógrafa e a sua obra passaram a pontuar a programação da Fundação e dos Encontros ACARTE.

Em 1991, na Fundação Calouste Gulbenkian, é proferida uma conferência intitulada Pina Bausch pela jornalista especializada em Dança Leonetta Bentivoglio.

 

 

Conferência de Leonetta Bentivoglio, 07-03-1991

Conferência de Leonetta Bentivoglio, 07-03-1991

Em 1993, o ACARTE organiza o Festival Renânia do Norte-Vestfália: a cultura numa região alemã. A obra da diretora da companhia de Wuppertal surge na programação, num ciclo de vídeo sobre a sua carreira, comentado por Raimund Hoghe, uma das personalidades mais influentes da Dança alemã contemporânea que, trabalhou por muitos anos com Pina Bausch, como dramaturgista.

Entretanto, em 1992, José Sasportes, na qualidade de diretor do ACARTE, iniciara os contatos com a Tanztheater Wuppertal no sentido de preparar um ciclo retrospetivo sobre a obra de Pina Bausch, que viria a ocorrer 1994, ano em que Lisboa foi Capital Europeia da Cultura. Numa iniciativa conjunta, a Fundação Calouste Gulbenkian, a Fundação das Descobertas e a LISBOA-94 organizaram a retrospetiva da obra da coreógrafa que ocorreu no âmbito dos Encontros ACARTE 94. Foram apresentadas 5 obras em 8 espetáculos, repartidos por dois palcos, no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém e no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian. 

À semelhança do que acontecera em 1989, também nesta altura foi grande a exigência no que se refere à cenografia. É o caso da peça Viktor que implicou a presença em palco de 15 homens, com mais de 65 anos, que soubessem dançar, 15 homens jovens fortes, entre 25 e 30 anos e, ainda, 2 ovelhas que durante o espetáculo deveriam ficar num curral e 4 cães pequenos, a improvisar no fundo do palco. Desta vez a terra veio de Wuppertal.

De todas as obras então apresentadas Café Müller, considerada como tendo características autobiográficas, foi a única que Pina Bausch nunca deixou de interpretar. Café Müller, refere Leonetta Bentivoglio,é uma lamentação de amor. Uma metáfora doce e inquieta sobre a impossibilidade de um contato profundo”. Trata-se de uma das mais breves obras do seu repertório, com apenas 40 minutos e seis intérpretes.

A retrospetiva da obra da coreógrafa incluiu ainda o lançamento da tradução em português do livro de Leoneta Bentivoglio Il teatro di Pina Bausch (1985; 1991), cuja edição esteve a cargo do ACARTE.

A carreira da diretora da Tanztheater Wuppertal foi também objeto de um reconhecimento oficial com a atribuição do grau de Grande-Oficial da Ordem de Santiago, por parte do Presidente da República, Mário Soares, numa cerimónia que teve lugar no dia 6 de setembro de 1994, no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, no final do espetáculo de estreia do ciclo retrospetivo. 

Posteriormente, irão ainda ter lugar algumas iniciativas onde é relevada a sua obra e o seu nome. É o caso dos Encontros ACARTE de 1998, no âmbito dos quais ocorreu, na zona de congressos da sede da Fundação Calouste Gulbenkian, uma exposição da autoria da fotógrafa americana Peggy Jarrell Kaplan, intitulada Exposição de fotografias de coreógrafos internacionais, que reúne os coreógrafos que participaram nas atividades programadas pelo ACARTE ao longo dos 14 anos da sua existência. Pina Bausch é naturalmente uma das protagonistas.

Refira-se, a título de curiosidade, que foi em 2008, em Lisboa, no Festival Pina Bausch organizado pelo diretor artístico do São Luiz Teatro, Jorge Salavisa, em conjunto com a direção artística do Centro Cultural de Belém, que Pina Bausch pisou pela última vez o palco interpretando Café Müller.

Após a morte de Pina Bausch, em 2009, Jorge Salavisa, ex-diretor artístico do Ballet Gulbenkian (1977-1996), que havia pertencido ao júri dos prémios ACARTE, organiza uma homenagem à coreógrafa intitulada “Pina Bausch um ano depois”. Para esta ocasião convida João Salaviza, recentemente laureado com a Palma de Ouro de Cannes com a sua curta Arena, a realizar uma curta-metragem a partir da peça Café Müller.

O projeto para a realização desta curta com o working title “Pina’s Last Dance” foi apresentado à Fundação Calouste Gulbenkian através da produtora Filmes Tejo II, tendo-lhe sido atribuído um subsídio no valor de 15,000€, pelo Serviço de Belas Artes, na rubrica Cinema Experimental.

A estreia ocorreu a 30 de junho de 2010 com o título definitivo Hotel Müller. Uma cópia desta curta-metragem está à guarda dos Arquivos Gulbenkian.

 

Pina Bausch, para além de constituir uma referência na Dança europeia pela sua obra e interpretação, fez também incursões no campo do Cinema. Aqui interveio como realizadora e atriz. Ela própria foi tema de obras cinematográficas.

São estes os casos de: O lamento da Imperatriz (1990), de Pina Bausch (documentário que reflete essencialmente o método de trabalho desenvolvido pela coreógrafa;  Lissabon Wuppertal Lisboa (1998) de Fernando Lopes (documentário sobre o processo criativo da obra, Masurca fogo); Hable com Ella (2002) de Pedro Almodóvar (com excertos das peças Café Müller e Masurca fogo); Hotel Müller (2010),  e também Pina (2011), de Wim Wenders (documentário sobre a obra da bailarina e coreógrafa alemã), e La Nave Va (2010) de Fellini. Este, quando a conheceu, de imediato a escolheu para interpretar um dos seus personagens, a princesa austro-húngara. Desse primeiro encontro escreveu um dia:

“Nunca conhecera nenhuma [princesa austro-húngara]. Mas eis que diante de mim, no agitar confuso e suado dos camarins do Teatro Argentina, entre um esvoaçar de toalhas e portas abertas e fechadas, ela ali estava, a minha princesa austríaca, tímida, composta, diáfana, vestida de escuro. Era Pina Bausch. Uma monja com um gelado, uma santa com patins, um rosto de rainha no exílio, de fundadora de ordem religiosa, de juiz de um tribunal metafísico, que de repente pisca o olho… com o seu rosto aristocrático, terno e cruel, misterioso e familiar, fechado numa enigmática imobilidade. Pina Bausch sorria-me para se dar a conhecer. Que belo rosto. Um desses rostos destinados a fixarem-nos, gigantescos e perturbadores, dos ecrãs de cinema.”

— Frederico Fellini em Uma santa com patins. Programa Encontros ACARTE 94, página 28. Arquivo Digital Gulbenkian 429691

Série

Dos Arquivos

Momentos relevantes na história de Calouste Gulbenkian e da Fundação Gulbenkian em Portugal e no resto do mundo.

Explorar a série

Definição de Cookies

Definição de Cookies

Este website usa cookies para melhorar a sua experiência de navegação, a segurança e o desempenho do website. Podendo também utilizar cookies para partilha de informação em redes sociais e para apresentar mensagens e anúncios publicitários, à medida dos seus interesses, tanto na nossa página como noutras.