Dos Delitos e das Penas
[…] esta pequena obra – e não está o pensamento ocidental cheio de pequenas grandes obras? – pode ser vista como o Manifesto do garantismo, ou seja: como manifesto das garantias, em direito e processo penais, do cidadão nas suas relações com o Estado detentor do ius puniendi. De sorte que tal peculiaridade explique muito da sua intransponível atualidade e se apresente como razão bastante e suficiente para novas edições, onde renovadas leituras encontram eco e respostas para os problemas que, em todas as épocas, aquela tensão vai exprimindo. De facto, a questão das relações entre o indivíduo (pessoa) e a autoridade (Estado) é, em todo e qualquer país, uma questão perenemente aberta, com um incerto e precário equilíbrio. E é por isso que resultam preciosas as reflexões de Beccaria. Não é por acaso que se possa considerar como chave de leitura transversal – e com isso diz-se tanto – a seguinte asserção: “não existe liberdade todas as vezes que. as leis permitem que em alguns casos o homem deixe de ser pessoa e se torne coisa” (XX – “Violências”). […]
É esta impostação – absolutamente extraordinária para aquela época -, conaturalmente liberal, que Beccaria transforma em pano de fundo das relações entre o Estado e o Indivíduo. Um Estado que deve servir a pessoa com o único fito de assegurar “a máxima felicidade repartida pelo maior número (“Introdução”)”. E esta extraordinária forma de ver e valorar as relações entre o Estado e o Indivíduo, entre Autoridade e Liberdade, não podia não reflectir-se no modo de afrontar a dilemática questão dos fins das penas que, daquele tipo de relações, é a mais imediata e real imagem especular. A variabilidade e a consequencial relatividade da questão criminal – sobretudo da legitimidade e da legitimação das penas – não são outra coisa senão o sinal tangível ou percetível da constante expansão e retração do poder coercitivo do Estado perante o indivíduo. Daí que perante esta insuperada e insuperável questão seja gratificante ter o apoio de uma voz – sobretudo quando ela se tem imposto “classicamente” já desde o século dezoito – que elege como tema central da problemática criminal o “âmbito penalmente relevante” e que, dentro daquele preciso quadro da relevância penal, defenda, intransigentemente, o mais amplo e alargado espaço de liberdade imune à coerção penal.
(Do ensaio introdutório de José de Faria e Costa)
Ficha técnica
- Outras Responsabilidades:
Trad. de José de Faria Costa; rev. por Primola Vingiano; com dois ensaios introd. de José de Faria Costa e Giorgio Marinucci
- Coordenação editorial:
- Fundação Calouste Gulbenkian
- Editado:
- Lisboa, 2017
- Páginas:
- 166 p.
- Título Original:
- Dei delitti e delle pene
- ISBN:
- 978-972-31-0816-3