Os universalistas chegam a Paris
Esta exposição multimédia propõe um olhar sobre meio século de pensamento e produção arquitetónica portuguesa, percorrendo o trabalho de arquitetos de referência como Fernando Távora, Alberto Pessoa, Ruy d’Athouguia, Manuel Tainha, Pancho Guedes, Nuno Teotónio Pereira, Nuno Portas, Álvaro Siza, Alcino Soutinho, Eduardo Souto de Moura, João Luís Carrilho da Graça, Manuel Graça Dias; e também de alguns dos mais promissores arquitetos portugueses das últimas décadas, como Manuel e Francisco Aires Mateus, ARX Portugal, Paulo David, Paula Santos, João Mendes Ribeiro, Cristina Guedes e Francisco Vieira de Campos. Na exposição misturam-se materiais relativos a 50 projetos – incluindo maquetes, desenhos técnicos e fac-símiles de esquissos ou esboços de arquitetos – com fotografias, textos e caricaturas que refletem as transformações político-sociais em Portugal, nos últimos 50 anos, como explica em entrevista o curador da exposição Nuno Grande.
Como é que o universalismo se aplica à arquitetura portuguesa?
O tema do universalismo na cultura portuguesa não é novo, tendo já sido abordado por muitos pensadores, de Miguel Torga a Agostinho da Silva, de Eduardo Lourenço a José Gil, enfim, por filósofos e ensaístas que escreveram sobre a nossa maneira de nos relacionarmos com o mundo, ou com o “outro”; algo que, na verdade, vem de tempos ancestrais: da nossa relação com a viagem, com a diáspora, com a emigração, e até com a colonização, fenómenos que, de alguma maneira, geraram essa posição “universalista” em relação ao que nos rodeia.
Na arquitetura, o tema não tem sido muito aprofundado, ainda que toda a gente reconheça em Álvaro Siza, por exemplo, uma capacidade peculiar de se relacionar com outras geografias, com outras culturas. Ele fá-lo sempre com uma atenção muito grande ao contexto onde realiza a sua obra, buscando referências no grande universo da História da Arquitetura, para, em seguida, as inscrever nesse lugar. É um exemplo interessante de como os melhores criadores portugueses sempre estabeleceram uma ponte conceptual entre aquilo a que chamamos hoje “local” e aquilo a que chamamos “global”. É um posicionamento que nem é localista, nem é globalizador; é, portanto, “universalista”; ou seja, não está interessado em impor uma arquitetura completamente regional, folclórica, ou pretensamente “portuguesa”, nem, por outro lado, idêntica em todo o lado, como ocorre hoje com a produção de muitos “arquitetos-estrelas” globais. Trata-se, nesse sentido, de uma arquitetura que está sempre a mediar essas duas escalas, essas duas dimensões.
Isso explica, de alguma forma, termos dois Pritzker portugueses?
Certamente. Eduardo Souto de Moura – que é já hoje muito mais do que um “discípulo” de Siza – tornou-se, ele próprio, num “mestre”, gerando, por sua vez, novos “discípulos”. Ambos ganharam o prémio Pritzker, a maior distinção que se pode atribuir no mundo da Arquitetura. É realmente uma condição inusitada: não há muitos países que se possam orgulhar de ter dois arquitetos galardoados deste modo. Para Siza e Souto de Moura, a questão da globalização é um meio de agir ou um modo de estar no mundo. Mas eles não se repetem, não fazem sempre a mesma obra em todo o lado. Transportam esse olhar “universalista” para cada lugar, adaptando o seu conhecimento disciplinar aos diferentes contextos. Não são arquitetos globais, são arquitetos universais.
Que arquitetos portugueses se inscrevem neste posicionamento universalista?
Uma das questões essenciais será perceber que esse posicionamento vai passando de geração em geração. Tentei escolher arquitetos que estivessem dentro de algumas “linhagens” geracionais, ou seja, que fossem discípulos de outros arquitetos que já possuíam esse posicionamento, e que, por sua vez, o tenham transmitido às novas gerações, embora, naturalmente, longe de uma perspetiva academizante. Procuro abarcar, pelo menos, três gerações que desde 1960 trabalham nessa perspetiva “universalista”, pelo menos, desde Keil do Amaral, Fernando Távora e Nuno Teotónio Pereira, só para citar alguns dos mais antigos. Naturalmente que os arquitetos não estão imunes às transformações políticas e sociais do mundo que os rodeia e que condicionam a encomenda da arquitetura, quer seja pública, quer privada. Resolvi, por isso, encaixar essas linhagens ou essas “transmissões geracionais”, dentro de cinco temas [ver abaixo Cinco momentos da arquitetura portuguesa em exposição] que vão “contaminando” a arquitetura portuguesa ao longo dos últimos 50 anos. A exposição mostra ainda como os mais jovens arquitetos ali presentes, nascidos na década de 60 e com uma carreira consolidada – como os irmãos Aires Mateus, o atelier ARX Portugal, João Mendes Ribeiro ou Paulo David –, receberam esse método de gerações anteriores, trabalhando ora em Portugal ora no estrangeiro. Não têm quaisquer complexos pelo facto de partirem de um país periférico da Europa; tratam por tu a História da Arquitetura e lidam abertamente com as condições da encomenda internacional.
Paramos na geração de arquitetos nascidos na década de 60 porquê?
Acho que em arquitetura, apesar de tudo, é necessário haver um certo “lastro”. Costumo dizer que a arquitetura é uma profissão de “maduros”. É preciso que as pessoas tenham provado, em mais que uma ou duas obras, possuir uma forma de pensar que não é apenas baseada no “novo pelo novo”, no sucesso de um primeiro projeto, nos comentários mediáticos ou nas votações “like” que recebem nas redes sociais. Tem de haver uma consolidação.
Esta exposição é sobre profissionais que já mostraram que, ao contrário do que muitas vezes se pensa, se pode fazer “novo” sem romper com o passado. Há quem defenda, no mundo da Arte, da Arquitetura, enfim, da criação contemporânea, que é preciso “matar o pai” para lhe sobrevivermos. Eu penso o contrário. A arquitetura portuguesa tem demonstrado que o “pai” – pensando metaforicamente em Siza – consegue ser muito mais jovem, em muitas das suas obras, do que muitos pretensos “jovens” que se dizem inovadores. E há também arquitetos que tendo trabalhado com Siza ou Souto de Moura, com Byrne ou Carrilho da Graça, conseguem hoje ultrapassar o estigma do “fiel seguidor”, conseguindo reinventar os seus ensinamentos. São esses os arquitetos que me interessam para caracterizar as gerações mais recentes.
Como é que as transformações político-sociais destes últimos 50 anos são evocadas na exposição?
Por imagens de época, entre outros, do Alfredo Cunha, que é provavelmente o fotojornalista que durante mais anos retratou Portugal e as suas particulares características. As imagens que ele captou nos últimos 50 anos serão projetadas, em contínuo, ao longo da exposição, acompanhando desenhos de João Abel Manta, talvez o maior caricaturista da cena portuguesa das últimas décadas. E teremos os textos de Eduardo Lourenço que nos falam de todos esses momentos. São três olhares não arquitetónicos sobre a nossa realidade (ainda que Manta seja arquiteto de formação).
Paralelamente, teremos entrevistas com cinco críticos de arquitetura portugueses – Ana Tostões, Ana Vaz Milheiro, José António Bandeirinha, Jorge Figueira e Ricardo Carvalho – e quatro críticos franceses – Jean-Louis Cohen, Jacques Lucan, Dominique Machabert e Francis Rambert –, personalidades a quem reconheço um conhecimento sustentado da arquitetura portuguesa e que representam olhares muito distintos entre si. Iremos confrontar as opiniões dos portugueses com as dos franceses, algo que faz sentido numa exposição em Paris.
CINCO MOMENTOS DA ARQUITETURA PORTUGUESA NA EXPOSIÇÃO:
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universalismo vs. (inter)nacionalismo (1960-1974)
Retrata-se o confronto com o último fôlego da ditadura nacionalista de Oliveira Salazar, mas também com o debate sobre o internacionalismo no seio dos arquitetos portugueses. “Na década de 60, os arquitetos pretendem seguir tendências internacionais, sem deixar de olhar para a Arquitetura Popular em Portugal e para os seus ensinamentos espaciais”, explica o curador.
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universalismo vs. colonialismo (1961-1975)
Neste tema expõem-se as questões colocadas aos arquitetos a trabalhar na África colonial portuguesa, nomeadamente em Moçambique e em Angola: como fazer uma arquitetura tropicalista, seguindo as tendências internacionais do modernismo? “É muito interessante ver como alguns arquitetos trabalham a partir dessa fusão entre tendências eruditas europeias ou brasileiras e as culturas autóctones africanas”, observa o curador.
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universalismo vs. revolução (1974-1979)
Com o 25 de abril, um dos problemas que é colocado aos primeiros governos provisórios é o do “direito à habitação” social. É um momento-chave, em que o arquiteto surge como agente social, tentando melhorar as condições de vida das pessoas. O processo SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local), lançado por Nuno Portas, então secretário de Estado da Habitação, torna-se marcante entre 1974 e 1976.
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universalismo vs. europeísmo (1980-2000)
“Como é que entrámos na União Europeia e o que é que ela trouxe à arquitetura portuguesa?”, pergunta Nuno Grande. A resposta passa pelos fundos estruturais e pelas novas oportunidades de trabalho para os arquitetos, quer em Portugal quer no estrangeiro. Com a abertura ao mercado comunitário, os arquitetos portugueses começam a entrar em concursos internacionais e as sua primeiras obras são publicadas em revistas prestigiantes – sobretudo em França, onde a arquitetura portuguesa era quase desconhecida até ao 25 de abril. “A forma de nos relacionarmos com a Europa, que até então tinha sido relativamente distante, mudou decisivamente”, sublinha o curador.
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universalismo vs. globalização (2001-2016)
O último momento da exposição articula o contraste entre a condição periférica de Portugal e a forte projeção universal da sua cultura. Esta universalidade, que tem como expoentes máximos os mais célebres arquitetos portugueses – Álvaro Siza e Eduardo Souto de Moura –, é hoje reinventada por uma nova geração, dentro e fora do espaço português.